Traduzir não é tarefa fácil. Traduzir línguas clássicas, que já não se utilizam no cotidiano, como o grego arcaico de Homero é ainda mais complexo. A tradução per se requer paciência e conhecimento mais do que as duas línguas, a que se traduz e a que acolhe a tradução. Os pontos de partida e de chegada, portanto, devem ser conhecidos. Mas não é o bastante. É preciso que se conheça o contexto e o assunto do que se traduz. No caso de tradução de texto literário, é preciso que se conheça o autor, seu estilo e a estrutura do texto que se traduz. Além disso, precisamos ter a consciência de que não existe a tradução, mas uma tradução possível naquele momento, quando nos referimos aos clássicos.
A tradução é sempre um infectum, uma ação não acabada, em processo. Por isto, existem incontáveis traduções, em uma mesma língua, de um texto como a Ilíada. Em língua portuguesa, no Brasil, por exemplo, publicadas e que eu conheço, existem quatro: a de Odorico Mendes, a de Haroldo de Campos, a de Frederico Lourenço, a de Christian Werner. Há uma mais recente, ainda não publicada, da autoria de Leonardo Antunes, professor da UFRGS.
A tradução é sempre um infectum, uma ação não acabada, em processo. Por isto, existem incontáveis traduções, em uma mesma língua, de um texto como a Ilíada. Em língua portuguesa, no Brasil, por exemplo, publicadas e que eu conheço, existem quatro: a de Odorico Mendes, a de Haroldo de Campos, a de Frederico Lourenço, a de Christian Werner. Há uma mais recente, ainda não publicada, da autoria de Leonardo Antunes, professor da UFRGS.
Vejamos o que ocorre em uma passagem do Canto XIII da Ilíada, em que vemos a morte de Harpálion, filho do rei Paflagônio Pilémenes, aliado dos Troianos. Harpálion é morto por Meríones (versos 630-655). Nada mais natural, em se tratando de um poema sobre a guerra de Troia e num canto em que o combate entre Aqueus e Troianos é dos mais encarniçados, tendo em vista que se dá diante das naus, depois que Heitor conseguiu ultrapassar o fosso e derrubar parte da muralha construída pelos Aqueus, para proteção do acampamento e das naus de um ataque troiano. As hostes de Heitor combatem as hostes de Ajax, num momento crucial da guerra, pois os Aqueus estão acuados em seu próprio acampamento. A situação dos Aqueus é tão crítica que leva Posídon a contrariar a determinação de Zeus, que proibira os deuses de intervir pessoalmente na guerra (Canto VIII). Se Zeus vigia a guerra do cimo do monte Ida, Posídon vigia Zeus dos cimos da Samotrácia. É num desvio da vigilância de Zeus que Posídon aproveita para, sob a forma do sacerdote Calcas, insuflar os Aqueus ao combate, de modo a rechaçar o ousado ataque de Heitor.
O que nos chamou a atenção no episódio da morte de Harpálion não foi sua morte, descrita com detalhes, inclusive anatômicos – a flecha disparada por Meríones atingiu-o na nádega direita (γλουτὸν δεξιόν, verso 651), traspassou-o por inteiro (ἀντικρὺ ἐξεπέρησεν) para chegar, por debaixo do osso (ὑπ᾿ ὀστέον,), à bexiga (κύστιν, verso 652). Assim como o prosaísmo da tradução por Frederico Lourenço de um dos termos gregos – σκώληξ, verme –, como minhoca. Não se trata aqui de dizer que é um erro de tradução ou um emprego distanciado do termo original. Em grego, σκώληξ é verme, genericamente falando, mas é minhoca também por poder ser traduzido, entre outras coisas, por verme da terra. A tradução é condizente.
O que nos causou espécie é o fato de que minhoca é muito prosaico, muito popular. Verme, mais genérico, seria talvez mais condizente com o texto homérico, acreditamos. Em geral, se observam, no texto homérico, símiles grandiosos com as forças da natureza e com os animais – árvores, ventos, chuvas, tempestades, mares, rios, neve, sol, leões, javalis, lobos, touros, galgos, águias, serpentes... A morte dos heróis é sempre lembrada com certa grandeza, seja pela sua bravura, seja pelo seu tamanho, fazendo ressoar a terra com sua queda.
Para não nos alongarmos muito, ficaremos neste Canto XIII, mostrando a morte de alguns dos heróis. Teucro, meio-irmão de Ajax Telamônio, mata Ímbrio, genro de Príamo, que desaba como o freixo no cume da montanha (versos 170-181), fazendo ressoar suas armas de bronze; Diomedes mata Otrioneu, que tombou com um estrondo (versos 370-373); Ásio vai em auxílio de Otrioneu, puxado por Diomedes, e também é morto por este, tombando como um carvalho, pinheiro ou choupo (versos 387-393); Idomeneu mata Alcátoo, genro de Príamo, fazendo-o tombar com um estrondo, por ser visto como uma coluna ou com uma árvore de alta folhagem (versos 427-443); Meríones mata Adamanto, que se contorce como um touro, com a lança do inimigo enfiada no seu baixo ventre (versos 566-575). Muitos deles caem e agarram a terra antes de a negra noite sobrevir a seus olhos. Os grandes heróis caem e, literalmente, beijam o pó do combate, mas sempre vistos com certa eloquência.
Não me recordo, salvo engano, de outro trecho em que uma comparação do herói morto com uma minhoca exista. Por mais que me esforce, não consigo ver em minhoca o estatuto de estilo eloquente que, por exemplo, verme tem. Apesar de não apresentar a dignidade do touro ou da grande árvore que desaba, verme é ainda superior no linguajar a minhoca. É como sinto no poema. Em todo o caso, acredito, que a escolha de verme ou minhoca se dá pelo fato que, como ensina Chantraîne, o vocábulo σκώληξ é proveniente da forma teórica *σκῶλος, com o sentido de curvatura. Já o dicionário de Romazi o associa a σκολιός, curvo, tortuoso, de onde vem a escoliose, a doença da coluna. A escolha do termo, na Ilíada, consistiria no fato de que o herói, atingido pela lança, teria desabado e se contorcido, como tantos se contorcem com a dor do ferimento, sobretudo na região do baixo ventre, como é o caso de Harpálion, até ficar estendido como um verme ao morrer. A região do baixo ventre, situada entre as partes pudendas (exatamente assim em Homero: αἰδοῖον) e o umbigo, é o local em que “Ares vem a ser doloroso para os miseráveis mortais“ (versos 568-569).
Todas as traduções por mim consultadas optaram por verme, genérico, em lugar do específico minhoca. Apresento, então, o texto em grego, com as traduções consultadas e uma proposta por mim (Canto XIII, versos 653-655):
ἑζόμενος δὲ κατ᾿ αὖτι φίλων ἐν χερςὶν ἑταίρων
θυμόν ἀποπνείων, ὥς τε σκώληξ ἐπὶ γαίῃ
κεῖτο ταθείς: ἐκ δ᾿ αἷμα μέλαν ῥέε, δεῦε δὲ γαῖαν.
Como fatos curiosos envolvendo tradução, chamo a atenção para três dos tradutores. Em primeiro lugar, Paul Mazon traduz em prosa, tendo em vista que esse tipo de tradução dá uma margem maior ao tradutor para manusear um texto poético, quando da passagem de uma língua para outra. Sobretudo, quando sabemos da complexidade que envolve o hexâmetro dactílico grego, com um número variável de sílabas entre 13 e 17. Também, porque temos o conhecimento de que a métrica grega, assim como a latina, se faz a partir da construção de pés e cada pé é um conjunto de sílabas, que no caso do hexâmetro varia entre 3 sílabas, o pé troqueu, constituído de uma sílaba longa e uma breve (‒ ᴗ), neste caso, só aplicável à última sílaba do poema, o pé spondeu, constituído de duas sílabas longas (‒ ‒), aplicáveis em todos os pés, à exceção do quinto, quando o hexâmetro é dactílico, e o dáctilo, um pé formado de três sílabas, sendo uma longa e duas breves (‒ ᴗ ᴗ). A situação se torna mais complexa, pelo fato de que não sobreviveu na língua portuguesa a diferença da intensidade dos fonemas vocálicos breves e longos.
Em segundo lugar, observa-se que a tradução de Haroldo de Campos é mais dramática do que as demais, referindo-se ao herói – e mais interpretando do que traduzindo – como alguém que “espoja-se no pó”, talvez espelhado na tradução de Odorico Mendes, que também se refere a Harpálion como alguém que “pelo pó se torce”, talvez para tirar proveito da rima interna em /po/. Além disso, o destaque que ele dá ao vocábulo verme, no fim do verso, rebaixa o herói, mais do que se encontra no texto homérico; ainda mais do que o termo minhoca usado por Frederico Lourenço. Mesmo que Haroldo de Campos inicie o verso seguinte com “quase”, provocando um enjambement “verme/quase” e quebrando o ritmo do original grego, de modo a traduzir ὥς σκώληξ – “como um verme”. No original, a comparação não só se encontra ligada no mesmo verso, ela é, sobretudo, a segunda parte do ritmo ternário do hexâmetro. Essa quebra, na cabeça de quem lê, traduz um rebaixamento do herói, que não se encontra no texto homérico. Conforme pensamos a escolha é mais da comparação do movimento do verme do que necessariamente com o verme em si, como podemos ver na genial estrofe 14 de Augusto dos Anjos, em Monólogo de uma Sombra, quando a rima entre “apodrece” e “s” (em itálico!) se faz de uma maneira nova, criando a plasticidade que a cena exige, ao imitar o movimento sinuoso do verme:
“É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.
Por último, mas não por fim, a tradução de Odorico Mendes realiza uma façanha, pois consegue traduzir os 837 hexâmetros do Canto XIII em 678 decassílabos! Registre-se que é um feito digno de Homero... Em compensação, Odorico mantém junta a comparação, preservando-a como a primeira parte do ritmo ternário do decassílabo, com pausa na terceira sílaba.
Bailly nos dá o sentido de σκώληξ, como verme da terra, abonando a passagem referida da Ilíada. Além de outros sentidos como larva de inseto, verme nas árvores e nos bosques, e vermes nos animais. Ao final, como um sentido translato, o Bailly diz que o termo, pode ter o sentido de “fio que se desenrola”. Até que alguém poderia traduzir metaforizando e dizer que o Harpálion morreu e estendeu-se na terra, como um fio que se alonga. Já que tantos traduzem interpretando, não creio que tal escolha constituísse um pecado grave.