Nos filmes que amo, amo tudo, até os personagens mais secundários. Em “Janela indiscreta” (Alfred Hitchcock, 1954), por exemplo, adoro uma personagem da qual ninguém lembra, ou nem sequer sabe que existe. É a “senhorita coração solitário”.
Na verdade, só avistada de longe, pelos vãos das janelas de seu pequeno apartamento, ela nem nome tem. Digo, ninguém na história sabe seu nome. Mas é por esta melancólica denominação romântica que a chamam os protagonistas do filme.
Janela Indiscreta ▪ 1954 ▪ Dir. Alfred Hitchcock
Sem nada a fazer, Jeff passa a maior parte do tempo na sua janela de fundos, espiando o pessoal de sua vizinhança. Por trás das muitas janelas do velho prédio, um mundinho de gente vive sua vidinha miúda, e assistir a esse espetáculo diário, a olho nu ou com binóculos ou outros dispositivos, é o divertimento maldoso de Jeff.
James Stewart (Jeff)
Uma cena bem sintomática no filme é aquela em que, numa noite qualquer, Jeff a espia servindo a ela mesma um jantar especial, com direito a velas e tudo mais. Normal, se à mesa só houvesse um prato. Mas há dois, e duas taças de vinho. Sim, depois de levantar sua taça e brindar a um companheiro inexistente, a “senhorita coração solitário” abaixa a cabeça, se dobra sobre a mesa e desaba num choro incontido. De cá, Jeff levanta sua taça e brinda com ela, mas ela nem vê.
Em certa ocasião o filme mostra a “senhorita coração solitário” se aprontando e saindo de casa, em busca de uma distração, ou se for o caso, de uma oportunidade sentimental. Volta muito alegre, acompanhada de um rapaz visivelmente mais novo, e Jeff torce (junto conosco, claro!) para que tudo dê certo. Não dá. Daí a pouco, o rapaz, nada romântico, se revela um aproveitador vulgar que só quer uma transa e nada mais. Ele a agarra de mal jeito, ela reage com repulsa, e ele é empurrado para fora. A moça tranca a porta com força e, mais uma vez, desaba no choro.
O interessante é que, sem querer nem saber, essa personagem obscura e inominada tem, a certa altura dos acontecimentos, um papel importante no desenrolar da trama do filme.
Judith Evelyn (Srta. Coração Solitário)
Ora, neste exato instante a polícia adentra o prédio. Coincidência? Milagre? Que nada. Acontece que um pouco antes disso, enquanto Jeff observava os movimentos do assassino,
Grace Kelly (Lisa)
No desenlace, praticamente ninguém termina bem. O casal protagonista não resolve suas muitas incompatibilidades – ele, um fotógrafo pobre, agora com as duas pernas engessadas; ela, uma dondoca cheia de luxos, lendo o que ele detesta: uma revista de moda. E quanto ao restante dos residentes do prédio, estes retomam, sem novidades, nem progresso, a sua vidinha miúda.
Pois bem, se há por acaso um happy end nesse filme sombrio, ele pertence à nossa “senhorita coração solitário”, ufa, ainda bem. Nas imagens finais, ela é vista no apartamento do terceiro andar, o do pianista, em conversa animada com aquele cuja bela composição musical salvara sua vida. Mesmo de longe é possível vislumbrar que o clima entre eles é, inconfundivelmente, de romance.
Um coração de senhorita que deixou de ser solitário. E viva o amor.