Nos filmes que amo, amo tudo, até os personagens mais secundários. Em “Janela indiscreta” (Alfred Hitchcock, 1954), por exemplo, adoro uma personagem da qual ninguém lembra, ou nem sequer sabe que existe. É a “senhorita coração solitário”.
Na verdade, só avistada de longe, pelos vãos das janelas de seu pequeno apartamento, ela nem nome tem. Digo, ninguém na história sabe seu nome. Mas é por esta melancólica denominação romântica que a chamam os protagonistas do filme.
Só pra situar: o filme – disso vocês lembram — é a história desse fotógrafo profissional, Jeff, que quebrou a perna num acidente de trabalho e agora, enfiado numa cadeira de rodas, está temporariamente recluso em seu modesto apartamento de Greenwich Village, só visitado pela sua enfermeira, e pela noiva.
Sem nada a fazer, Jeff passa a maior parte do tempo na sua janela de fundos, espiando o pessoal de sua vizinhança. Por trás das muitas janelas do velho prédio, um mundinho de gente vive sua vidinha miúda, e assistir a esse espetáculo diário, a olho nu ou com binóculos ou outros dispositivos, é o divertimento maldoso de Jeff.
Pois uma das vítimas de sua curiosidade é essa solteirona, sem muitos dotes estéticos, magra, alva e meio ruiva, que vive sozinha, coitada, sonhando com o grande amor que nunca vem. Por isso mesmo, é apelidada por Jeff, sua noiva e sua enfermeira de “Miss Lonelyhearts”.
Uma cena bem sintomática no filme é aquela em que, numa noite qualquer, Jeff a espia servindo a ela mesma um jantar especial, com direito a velas e tudo mais. Normal, se à mesa só houvesse um prato. Mas há dois, e duas taças de vinho. Sim, depois de levantar sua taça e brindar a um companheiro inexistente, a “senhorita coração solitário” abaixa a cabeça, se dobra sobre a mesa e desaba num choro incontido. De cá, Jeff levanta sua taça e brinda com ela, mas ela nem vê.
Em certa ocasião o filme mostra a “senhorita coração solitário” se aprontando e saindo de casa, em busca de uma distração, ou se for o caso, de uma oportunidade sentimental. Volta muito alegre, acompanhada de um rapaz visivelmente mais novo, e Jeff torce (junto conosco, claro!) para que tudo dê certo. Não dá. Daí a pouco, o rapaz, nada romântico, se revela um aproveitador vulgar que só quer uma transa e nada mais. Ele a agarra de mal jeito, ela reage com repulsa, e ele é empurrado para fora. A moça tranca a porta com força e, mais uma vez, desaba no choro.
O interessante é que, sem querer nem saber, essa personagem obscura e inominada tem, a certa altura dos acontecimentos, um papel importante no desenrolar da trama do filme.
Vocês lembram muito bem que o grosso da história é um horrendo feminicídio que acontece no prédio, num dos apartamentos do térreo, crime eventualmente desvendado pela curiosidade de Jeff. Curiosidade dele, de sua noiva, Lisa, e de sua enfermeira, Estela. Pois em dado momento em que o assassino está ausente, Lisa, do jardim, dá um jeito de, em busca de provas, pular pela janela e entrar no apartamento sinistro, momento em que o assassino retorna e a coisa complica. Talvez seja este o momento de maior suspense no filme todo.
Ora, neste exato instante a polícia adentra o prédio. Coincidência? Milagre? Que nada. Acontece que um pouco antes disso, enquanto Jeff observava os movimentos do assassino, a sua enfermeira notara algo estranho no apartamento da “senhorita coração solitário”. A moça abrira um frasco inteiro de comprimidos e, deprimida, fazia menção de engolir. Alertado, Jeff telefona à polícia para o socorro. Nesse ínterim, ouve-se uma música que vem de um outro apartamento, no terceiro andar. Belíssima, a música detém o gesto da suicida, mas aí, a polícia já fora chamada, e, assim, chega a tempo para salvar Lisa das garras do assassino.
No desenlace, praticamente ninguém termina bem. O casal protagonista não resolve suas muitas incompatibilidades – ele, um fotógrafo pobre, agora com as duas pernas engessadas; ela, uma dondoca cheia de luxos, lendo o que ele detesta: uma revista de moda. E quanto ao restante dos residentes do prédio, estes retomam, sem novidades, nem progresso, a sua vidinha miúda.
Pois bem, se há por acaso um happy end nesse filme sombrio, ele pertence à nossa “senhorita coração solitário”, ufa, ainda bem. Nas imagens finais, ela é vista no apartamento do terceiro andar, o do pianista, em conversa animada com aquele cuja bela composição musical salvara sua vida. Mesmo de longe é possível vislumbrar que o clima entre eles é, inconfundivelmente, de romance.
Um coração de senhorita que deixou de ser solitário. E viva o amor.