Mendelssohn escreveu canções sem usar palavra alguma. Foram mais de 40, descritas apenas com o piano e o alfabeto das colcheias. Assim também fez em alguns poemas sinfônicos, entre eles “Sonhos de uma noite de Verão” e “A Gruta de Fingal”.
No primeiro, após se entusiasmar com a leitura shakespeariana, o compositor retratou-o nas melodias que remontam à mitologia greco-romana, em meio a florestas cheias de elfos, fadas e duendes. Na segunda obra, também chamada de “As Hébridas”, ele descreve com a mais cristalina e eloquente fidelidade o ecos sonoros emitidos pela caverna marinha, em resposta aos vigorosos afagos com que as ondas do mar revolto abraçam aquelas misteriosas e impressionantes formações basálticas na desabitada ilha escocesa homônima.
"Canção do viajante", “A gôndola veneziana" , "Tristeza da alma", "Brisas de maio", “A Nuvem de lã", "O alegre camponês", “Ventos do outono”, são algumas das tão apreciadas canções sem palavras do mestre de Hamburgo. É possível que a estreita afinidade com a literatura tenha feito de Mendelssohn o “mais clássico dos românticos”. Sua afinidade com as letras veio da infância, o que levou o seu então professor de música a provocar uma visita a Goethe, que, já consagrado, e com 75 anos, se encantou com o garoto de 12 interpretando fugas de Bach.
Dois anos depois, Mendelssohn quis rever o escritor e, dessa vez, Goethe fustigou-o tentando tirar-lhe poesia e filosofia das pontas dos dedos, ao convidá-lo a tocar novamente: “Vem aqui e me faz reviver os espíritos adormecidos neste piano!” - como relatou o escritor e crítico de arte francês, Henri Blaze de Bury, outro que fez da música e das letras a arte de viver, no livro “Goethe e Beethoven”.
Música e literatura sempre se imiscuíram em uma ligação, às vezes tão intrínseca, que podem ser fundidas semiótica e simbioticamente desfocando a tênue linha que as separa. Isso provocou grandes afinidades humanas entre artistas como, por exemplo, Beethoven e Goethe. Apesar de efêmera, a amizade deixou marcas de admiração profunda em ambos, nos idos de Weimar.
Muitos compositores eruditos transcreveram para a partitura não somente cenas do drama, da tragédia, das paixões humanas, tanto quanto paisagens e fenômenos da natureza. Desde a Gavota “para as flores e os zéfiros”, em que Rameau reflete o doce bucolismo das pétalas ao vento, à idílica visão de Richard Strauss nos poemas “Assim falou Zaratrusta” e suas estonteantes visões das montanhas da “Sinfonia Alpina”, nas quais as paisagens do mundo e da mente estão nitidamente espelhadas pela linguagem harmônica dos sons.
Assim como há artistas capazes de interlaçar diferentes expressões, como música e literatura, rompendo os limites que as definem, fundindo as formas de linguagem e transcrevendo-as em nova concepção, há os pintores que conseguem fazer soar de suas telas toda a essência da música, da natureza, da poesia, do drama, do romance, dos conflitos e da história da humanidade.
Flávio Tavares é um perfeito exemplo do que tento aqui dizer. Sua obra canta, declama, grita, dança, fala, ecoa tanto com a grandeza sinfônica de um Bruckner e de um Berlioz, como na delicadeza impressionista de Satie e Debussy. Ora pontilhada com o lirismo de Camões, ora nos lançando à Pasárgada de Bandeira.
Com a mesma bravura dramática dos grandes mestres universais, Flávio faz de sua vida uma incansável e vitoriosa epopeia capaz de moldar a monumental encíclica que reúne toda a saga humana em cores e formas. Os romances descritos em suas composições possuem figuras, objetos, olhares, cantos e recantos que têm voz própria e individual, mas dialogam entre si varando séculos de lendas e histórias, explícitas, implícitas, conhecidas ou desconhecidas. Como na trama polifônica composta por Bach, onde vozes e planos diversos se justapõem com a precisão aritmética que a arte do contraponto exige, na obra de Flávio cada detalhe é posto sábia e milimetricamente no lugar certo.
Dotado de notável domínio do equilíbrio estético-formal, ele é capaz de abrigar em seu trabalho temas de caráter mais diversos, desde um protesto político-ideológico aos mistérios de uma floresta mágica, de uma figura religiosa, de um olhar fugidio, de uma canoa no rio, da sinuosidade das beiras de praias ou campos abertos, reais e imaginários, à luz dourada de um crepúsculo ou à penumbra de uma noite mágica. Tudo transcende com igual perfeição, seja na bidimensionalidade de um pequeno rabisco monocromático ou na profundidade volumétrica de uma estonteante paisagem em um imenso painel multicor.
Certa vez, saímos de uma visita à casa de Rembrandt, na Holanda, e mencionei aos familiares que comigo estavam: “Pela primeira vez consegui ver cores em desenhos preto-e-branco”. Os bicos de pena daquele mestre tinham nuances tão ricamente bem dosadas em efeitos sutis de luz, sombra e profundidade que os tornavam coloridos, ainda que com as cores da mais pura emoção. Nos desenhos de Flávio dá-se o mesmo. Todo o arco-íris de sua profícua imaginação pode ser retratado no preto que se multiplica sobre o branco infinitamente colorido.
Ah, Flávio, que orgulho a Paraíba tem de ti no mundo afora. Emparelha-te com Villa-Lobos, Nelson Freire, Pedro Américo e outros nobres que sideram orbitando além do oceano, desenvoltos que nos honram. Conseguiste, como Villa, embutir na tua obra a Amazônia inteira. E de sobra, o romantismo tão latino-americano. Tuas palmas e palmeiras se enroscam à nossa história. Bem contada, te fizeram imortal das pinceladas com o que há de mais telúrico. De um pincel de que poucas letras ousaram chegar perto.