Como um rio
Escrevo, quase sempre no arrastar dos dias, medindo a temperatura dos meus sentimentos. Mas também como um rio em busca do mar. Estado que me dá a chave do tempo. Com ela, posso movê-lo ao meu bel-prazer e até aprisioná-lo. Meus olhos, mesmo fechados, se converteram em lentes poderosas.
Se soubesses... Tudo tão contraditório em mim! Quero apossar-me de todas as paisagens e passagens, com suas cores, marcas, perfumes, e ao mesmo tempo desejo adormecer, até mesmo anestesiar-me, algumas vezes. Cansaço!
O mundo também, hoje, me parece cansado! O canto dos pássaros e outros vestígios do dia se recolhem. Daqui a pouco, as nuvens vão trocar o manto de franjas corais, arrastado pelo sol, por outro azul profundo que será bordado, pouco a pouco, de luzes tímidas.
Bela hora indecisa, em véu de melancolia, convite a introspecção e prece! Olho para o alto e agradeço. Meu olhar passeia nessa contemplação sem desviar- se, buscando um milagre. O coração se alvoroça, embarca nessa viagem. Ainda não entendeu que é busca impossível...
Penso em ti, lembrando dos nossos fins de tarde, de ternura, de revelações, de comunhão que dispensa palavras. Choque entre desejo e realidade. A loucura de buscar o terreno mágico, em que nos movíamos, e não mais encontrá-lo.
Queria tanto ver-te! Alguns segundos, para reanimar-me e para ouvir tuas sábias palavras. “Viver intensamente cada instante ofertado é palavra de ordem, porque somos seres marcados pelo efêmero”. Aprendi tanto contigo! “O céu não é belo só porque é estrelado, mas também pelas estrelas que há em nós, pois a luz atrai luz, e a beleza atrai beleza”.
Tua falta me desconcerta! A vida num instante se dilui! No entanto, as marcas significativas de cada passagem resistem. As tuas se espalham por toda parte, vívidas, nas coisas que tocaste, disseste, criaste. Impossível apagá-las, ainda que eu quisesse.
Até porque refugio-me na arca das lembranças. Ritual de encantamento que ameniza a realidade... Amar é rama que se espalha nas terras do ser e faz brotar flores de fertilidade e alegria. O contrário de amar é tornar-se infértil, fazer-se deserto.
Nesse lugar, meu constante refúgio, faço tentativas de não endurecer, de me fazer oásis... Sonho com os abraços que gostaria de te dar, neste entardecer e a cada instante em que tua lembrança me invade. Sou como um rio, um rio sôfrego, correndo para o mar, porque tu és esse mar.