Quais são os caminhos percorridos pela criação? Muitos, sem dúvida. Às vezes, uma simples referência se esconde em um labirinto, cujas vias nem sempre são fáceis de palmilhar. Peguemos, como exemplo, uma passagem de Os sertões. O estilo de Euclides da Cunha, nessa obra é caracterizado, entre outros recursos, pela utilização do superlativo absoluto sintético, pela abundância das figuras de linguagem, de que se destacam as aliterações e as figuras de oposição do discurso – antítese, paradoxo e oxímoro. Em meio a tanta riqueza estilística, sempre nos despertou o interesse uma alegoria de Euclides da Cunha para explicar como se deu o confronto
entre as forças do exército e os jagunços, na guerra de Canudos. Trata-se da alegoria do touro e da sucuri, expressa em “A Luta” (Quarta Parte – Quarta Expedição. Capítulo IV, p. 390):
“A tática invariável do jagunço, expunha-se temerosa naquele resistir às recuadas, restribando-se em todos os acidentes da terra protetora. Era a luta da sucuri flexuosa com o touro pujante. Laçada a presa, distendia os anéis; permitia-lhe a exaustão do movimento livre e a fadiga da carreira solta; depois se constringia repuxando-o, maneando-o nas roscas contráteis, para relaxá-las de novo, deixando-o mais uma vez se esgotar no escarvar, a marradas, o chão; e novamente o atrair, retrátil, arrastando-o – até ao exaurir completo...”
CUNHA, Euclides. Os sertões; edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. 2. ed. São Paulo: Ubu Editora; Edições SESC São Paulo, 2019.
A alegoria, num sentido genérico, é uma metáfora, por se construir na analogia e na similitude. Mas diferentemente da metáfora específica, em que há uma subjetividade permeando os termos que se comparam, a alegoria permite que se entenda de modo denotativo o seu sentido de superfície, sem que seja necessário que façamos um exercício mental, para entender as relações entre os termos comparados. Já o sentido em segundo grau da alegoria é possível ser percebido, pelo fato de a similitude ali expressa tornar-se clara pelo contexto. O trecho a que nos referimos se encontra em um dos momentos cruciais da campanha de Canudos, quando o general Artur Oscar de Andrade Guimarães tem que tomar uma decisão de entender a tática dos jagunços, para poder reorganizar um contingente esfalfado e faminto, “porque a tenacidade feroz do jagunço transfigurou os batalhões combalidos do general Artur Oscar [...] lhes era impossível o recuo; forçadamente heroicos, encurralados, cosidos a bala numa nesga de chão...” (p. 386).
A serpente envolve o touro vigoroso e ora o constringe, com os músculos de seus anéis; ora alivia a pressão, de maneira a dar à vítima a falsa sensação de liberdade.O momento é a batalha iniciada em 28 de junho, que se revelou “uma tarefa penosíssima”: esfomeados, desorganizados, mortos os bois que levavam o poderoso canhão 32, para a nutrição da tropa, o general tinha diante de si o esforço supremo de “fazer daquele acervo de homens e bagagens um exército” (p. 388), apesar da fabulosa quantidade de munição e dos “dezenove canhões modernos...” (p. 388). O assédio de uma tropa de seis mil homens e as balas de canhão despejadas sobre o arraial, desde a manhã do dia 29, espantaram “a colmeia” (p. 389), mas não abalaram a “tapera babilônica” (p. 400). A população, em Canudos, e os jagunços, no campo de batalha, sabiam se fazer invisíveis. A estratégia dos jagunços era a da guerra de guerrilha, num constante avançar e retroceder, despachando sempre alguns tiros, mas jamais se mostrando face a face. Eram, no dizer de Euclides da Cunha, “adversários incorpóreos, que [os soldados] não viam...” (p. 394).
É aí que se constitui a cena apropriada à criação da alegoria do touro e da sucuri: a serpente envolve o touro vigoroso e ora o constringe, com os músculos de seus anéis; ora alivia a pressão, de maneira a dar à vítima a falsa sensação de liberdade. Trata-se apenas de uma tática para apertá-la ainda mais e acabar por fazê-la sucumbir. Assim, era o modo de agir sistemático dos jagunços, contra um exército, se se podia chamar assim, desorganizado, colecionando fracassos, com sucessivas mudanças de comando e, embora numeroso, inoperante, por não saber conduzir as tropas de modo taticamente organizado:
“Estavam no centro das operações – e não podiam dar um passo à frente ou, o que era pior, não podiam dar um passo à retaguarda. Haviam esparzido profusamente pelos ares mais de um milhão de balas; haviam rechaçado o adversário em todos os recontros e sentiam-no porventura mais ameaçador em roda, prendendo-os, cortando-lhes o passo para o recuo, depois de o haverem tolhido para a investida” (p. 386-7).
A alegoria do touro e da sucuri, que vemos em Os sertões, foi, possivelmente, inspirada no poema também alegórico, “A Cachoeira”, de Castro Alves, que integra o livro póstumo A cachoeira de Paulo Afonso, na verdade um único poema, constituído de várias partes:
A Cachoeira
Mas súbito da noite no arrepio Um mugido soturno rompe as trevas... Titubantes — no álveo do rio — Tremem as lapas dos titães coevas!... Que grito é este sepulcral, bravio, Que espanta as sombras ululantes, sevas?... É o brado atroador da catadupa Do penhasco batendo na garupa!... Quando no lodo fértil das paragens Onde o Paraguaçu rola profundo, O vermelho novilho nas pastagens Come os caniços do torrão fecundo; Inquieto ele aspira nas bafagens Da negra suc’ruiúba o cheiro imundo... Mas já tarde... silvando o monstro voa... E o novilho preado os ares troa! Então doido de dor, sânie babando, Co’a serpente no dorso parte o touro... Aos bramidos os vales vão clamando, Fogem as aves em sentido choro... Mas súbito ela às águas o arrastando Contrai-se para o negro sorvedouro... E enrolando-lhe o corpo quente, exangue, Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue. Assim dir-se-ia que a caudal gigante — Larga sucuruiúba do infinito — Co’as escamas das ondas coruscante Ferrara o negro touro de granito!... Hórrido, insano, triste, lacerante Sobe do abismo um pavoroso grito... E medonha a suar a rocha brava As pontas negras na serpente crava!... Dilacerado o rio espadanando Chama as águas da extrema do deserto... Atropela-se, empina, espuma o bando... E em massa rui no precipício aberto... Das grutas nas cavernas estourando O coro dos trovões travam concerto... E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas Caem de horror no abismo estateladas... A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo! A briga colossal dos elementos! As garras do Centauro em paroxismo Raspando os flancos dos parcéis sangrentos. Relutantes na dor do cataclismo Os braços do gigante suarentos Aguentando a ranger (espanto! assombro!) O rio inteiro, que lhe cai do ombro. Grupo enorme do fero Laocoonte Viva a Grécia acolá e a luta estranha!... Do sacerdote o punho e a roxa fronte... E as serpentes de Tênedos em sanha!... Por hidra — um rio! Por áugure — um monte! Por aras de Minerva — uma montanha! E em torno ao pedestal laçados, tredos, Como filhos — chorando-lhe — os penedos!!!...
Mas súbito da noite no arrepio Um mugido soturno rompe as trevas... Titubantes — no álveo do rio — Tremem as lapas dos titães coevas!... Que grito é este sepulcral, bravio, Que espanta as sombras ululantes, sevas?... É o brado atroador da catadupa Do penhasco batendo na garupa!... Quando no lodo fértil das paragens Onde o Paraguaçu rola profundo, O vermelho novilho nas pastagens Come os caniços do torrão fecundo; Inquieto ele aspira nas bafagens Da negra suc’ruiúba o cheiro imundo... Mas já tarde... silvando o monstro voa... E o novilho preado os ares troa! Então doido de dor, sânie babando, Co’a serpente no dorso parte o touro... Aos bramidos os vales vão clamando, Fogem as aves em sentido choro... Mas súbito ela às águas o arrastando Contrai-se para o negro sorvedouro... E enrolando-lhe o corpo quente, exangue, Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue. Assim dir-se-ia que a caudal gigante — Larga sucuruiúba do infinito — Co’as escamas das ondas coruscante Ferrara o negro touro de granito!... Hórrido, insano, triste, lacerante Sobe do abismo um pavoroso grito... E medonha a suar a rocha brava As pontas negras na serpente crava!... Dilacerado o rio espadanando Chama as águas da extrema do deserto... Atropela-se, empina, espuma o bando... E em massa rui no precipício aberto... Das grutas nas cavernas estourando O coro dos trovões travam concerto... E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas Caem de horror no abismo estateladas... A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo! A briga colossal dos elementos! As garras do Centauro em paroxismo Raspando os flancos dos parcéis sangrentos. Relutantes na dor do cataclismo Os braços do gigante suarentos Aguentando a ranger (espanto! assombro!) O rio inteiro, que lhe cai do ombro. Grupo enorme do fero Laocoonte Viva a Grécia acolá e a luta estranha!... Do sacerdote o punho e a roxa fronte... E as serpentes de Tênedos em sanha!... Por hidra — um rio! Por áugure — um monte! Por aras de Minerva — uma montanha! E em torno ao pedestal laçados, tredos, Como filhos — chorando-lhe — os penedos!!!...
É interessante ver, na última estrofe do poema, a alusão ao episódio de Laocoonte e os filhos, que se encontra no Livro II da Eneida, quando o sacerdote troiano, após advertir os seus conterrâneos sobre o perigo do cavalo de madeira, fere-o com uma lança, jogado contra o seu flanco. Imediatamente, duas serpentes, oriundas da ilha de Tênedos, aparecem e sufocam-no, juntamente com os seus dois filhos (versos 199-227). Atente-se também para o detalhe de que Castro Alves utiliza-se das expressões admirativas, na estrofe anterior – espanto! assombro! –, assim como o faz Eneias, ao relembrar o fato à rainha Dido – horresco referens! (horrorizo-me ao narrar, verso 204).
O poema de Castro Alves não só teria inspirado a criação da alegoria a Euclides da Cunha. Ele inspirou também a criação do parque “O Touro e a Sucuri”, em Paulo Afonso, na Bahia, à beira de um lago artificial, próximo à hidrelétrica, onde podemos ver uma estrofe do poema do poeta baiano, e uma magnífica escultura de bronze, da autoria do artista Deocleciano Martins de Oliveira, representando luta entre duas forças da natureza – a serpente e o touro –, alegoria, por sua vez de duas outras grandes forças naturais – a cachoeira de Paulo Afonso e a penedia, conforme podemos ler no poema citado.
Constate-se, pois, que a alegoria de Euclides da Cunha, expressando as lutas titânicas, é um dos exemplos magníficos do caminho percorrido pela arte, abrindo-se em várias formas e possibilidades: Homero (Canto VIII da Odisseia) inspira Virgílio (Livro II da Eneida), onde Castro Alves vai buscar o fechamento de seu poema. Por sua vez, o poema supostamente levaria Euclides da Cunha a mostrar a precisão da tática de guerrilha dos jagunços contra a força do governo, tornada “fraqueza do governo”; e, com a maior das certezas, inspira a estátua alegórica de Deocleciano Martins de Oliveira. Um percurso e tanto.