A complexidade que permeia a tradução exige do tradutor muitas habilidades, que vão além do conhecimento das duas línguas envolvidas no processo. Costumo sempre deixar claro que, em primeiro lugar, deve-se ter bem explícito o objetivo da tradução: a quem ela se destina e ao que se destina. Em seguida, não concebo a tradução sem o conhecimento do assunto e, principalmente, sem que se procure atentar para o texto como uma estrutura, em que as palavras e seus sentidos se reclamam.
O contexto cultural do autor e da sua obra são elementos que não podem ser desprezados, sobretudo se o tradutor se encontra diante de um autor de obra extensa, com um vocabulário que se repete, com frequência, e cujo significado pode variar, a depender da própria evolução da sua escrita. O tradutor está sempre com escolhas para fazer, mas cuja negociação não pode ou não deve ultrapassar os limites da contextualização e da cultura do texto a se traduzir.
A partir da minha experiência como tradutor de latim e de grego, este menos do que aquele, sempre tendo como objetivo a sala de aula, por isto mesmo não me considero tradutor profissional, constatei que, além de todos os elementos aqui já destacados, o horizonte de expectativa de quem traduz influi no produto final de sua tradução.
Pode parecer estranho que só agora eu tenha atinado para tal fato, quando este passivo cultural, que Gérard Genette (Palimpsestes, Paris, Seuil, 1992) chama tecnicamente de horizonte de expectativa, é fundamental para quem lida constantemente com cultura e com criação artística. Tentarei explicar o que parece uma estranheza para alguns.
Nem sempre o tradutor explica qual o objetivo de sua tradução. Muitas vezes, ela reflete uma interpretação e não o que se encontra no texto. É preciso deixar claro que não estamos falando de tradução literal, o que é praticamente impossível, mas de traduções que procuram, o máximo possível, se aproximar do texto original. Há mesmo uma tendência crescente e, considero preocupante, de traduções artísticas ou poéticas, nas quais o tradutor ensaia o seu vezo poético e sacrifica o texto original. Tal sacrifício se torna maior quando se procura fazer uma tradução metrificada e rimada, sobretudo, se o sistema de versificação da língua de partida não bate com o da língua de chegada, como se pode observar com o grego ou latim, em relação à língua portuguesa, por exemplo.
Mesmo quando estamos diante de uma tradução mais próxima do texto original, é preciso fazer algumas alterações de sentido ou de estrutura, para que o produto final fique legível. Acredito e defendo que, em isto acontecendo, o tradutor deve, por exigência de ofício e de explicitação dos critérios de sua tradução, deixar claro o que aconteceu com uma nota de rodapé. Desse modo, o leitor terá conhecimento das modificações ocorridas e poderá, ele próprio, fazer as suas escolhas.
É neste momento que entra o horizonte de expectativa do tradutor, para poder moldar alguma expressão típica da língua de origem com alguma outra na sua própria língua, pois se a tradução se pretender literal, pode não ser compreendida. Ainda assim, é necessário, reforço, que a explicação seja dada como nota.
Motivei-me a escrever sobre isto com a leitura de Crime e castigo, na tradução de Paulo Bezerra (São Paulo, Editora 34, 7ª edição, 2016; 1ª reimpressão, 2018). Criterioso, Paulo Bezerra escreve um posfácio ao livro – “Um romance que o tempo consagrou” –,em que ele põe em pauta a importância do romance e como ele revolucionou Petersburgo, na época de seu lançamento (1866). Ele trata ainda do porquê da revisão de sua tradução, publicada inicialmente em 2001, considerada o seu “batismo de fogo no campo de provas com o discurso de Dostoiévski” (p. 567), seguindo-se uma excelente discussão sobre tradução. Sempre tive a convicção de que se é para ler sobre tradução, que se leiam as reflexões de tradutores sobre o fato. Há quem dedique muito tempo a ler teoria de tradução, o que não condeno, mas não há quem entenda melhor de tradução do que quem está com a mão na massa. E isto se percebe em uma afirmação sintética e das mais lúcidas que Paulo Bezerra faz sobre o assunto:
Paulo Bezerra
“O tradutor do texto original é um mediador entre o autor e o leitor, e esta é uma interação entre duas línguas, dois sistemas de códigos linguísticos, duas culturas e – acho que não exagero – duas subjetividades criadoras”
⏤ p. 569 ⏤
Paulo Bezerra não só não exagera, como está corretíssimo. E isto me faz lembrar dos que querem tratar o sistema de versificação greco-latino, como se fosse similar ao da língua portuguesa ou os que querem “inventar” na tradução, suprimindo ou acrescentando algo ao texto, para atender as suas veleidades poéticas. Eis, de novo, o que pensa Paulo Bezerra:
“O tradutor que, conscientemente, suprime palavras de uma obra ou amaneira o estilo do autor comete a presunção de se achar superior a ele a ponto de ‘corrigi-lo’. Em suma, trai o autor.”
⏤ p. 572 ⏤
Paulo Bezerra conta com a minha plena concordância, pois esta atitude está adquirindo certa “normatividade” nas traduções que acompanho, sobretudo no Brasil. E, muitas vezes, não se pode criticar uma tradução, se o tradutor for uma das muitas vacas sagradas, venerado e incensado nas academias. Há uma tendência crescente no Brasil de alguns tradutores desejarem ser mais poetas do que os poetas que traduzem.
O entendimento do contexto e a subordinação da tradução a ele é defendida por Paulo Bezerra, com o sentido de nos afastar do vício de querer tomar palavras e frases isoladamente, tanto quanto para deixarmos de lado a “ilusão da literalidade e fidelidade à letra do texto”. Esta “ordem linguística” deve submeter-se à “ordem poética, alicerçada nos sentidos emanados do espírito do contexto”, porque só ela é capaz de fazer “o leitor sentir-se envolvido no espírito do contexto” (p. 574). É com esta compreensão que vemos tantos ditos e expressões do nosso cotidiano, num romance russo – “conversa pra boi dormir”, “falando mais que o homem da cobra”, “é chegado a umas biritas” (p. 143); “essa lenga-lenga, esse chover no molhado” (p. 156); “voz de taquara rachada” (p. 163); “ir logo dando no pé”, “e tudo foi para o brejo” (p. 170); “Elas não têm onde cair mortas” (p. 219)...
Seria entediante destacar todas as expressões. A adaptação ao universo do leitor é importante, pois creio que no russo, língua que desconheço completamente, estas expressões sejam ditas de modo diferente, mas guardando um sentido equivalente àquelas usadas por Paulo Bezerra. Só senti falta de uma nota transcrevendo a expressão russa e o que ela diz naquela língua. Mas não é culpa de Paulo Bezerra, pois ele explica esse processo no seu posfácio. A culpa é do sistema de editoração que limita as informações ao leitor, premido pelo aumento dos gastos de uma determinada edição.
É lógico que esta compreensão da tradução faz parte do horizonte de expectativa do tradutor: quanto mais amplo, mais possibilidades de escolha estrutural ele terá. Vejamos como isto se dá em duas passagens do romance. A primeira trata das exéquias de Marmieládov, preparadas com certo esmero pela mulher Catierina Ivánovna:
“De fato, tudo estava preparado às mil maravilhas: a mesa posta com bastante limpeza, louça, garfos, facas, taças, cálices, xícaras – tudo, é claro, misto, de diferentes modelos e tamanhos, tomado de empréstimo a diversos inquilinos, mas na hora determinada tudo estava em seu lugar”.
⏤ p. 387 itálicos nossos ⏤
Para o leitor de Manuel Bandeira, não há como não trazer à mente o poema “Consoada”, aludindo à visita da morte, recepcionada como se recepciona quem chega para uma ceia de natal:
“Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.”
A alusão se faz mais forte, quando sabemos pela leitura do romance, que as exéquias russas se acompanhavam de uma ceia, para celebrar a memória do morto. Há, claro, diferenças de concepção entre “Consoada” e o trecho de Crime e castigo, mas não tenho dúvida de que o que pesou na hora do texto final da tradução foi o fato de Paulo Bezerra ter à sua disposição, na sua mente, o poema.
O outro momento é quando Raskólnikov, num dos seus sonhos/delírios, encontra uma menina num corredor, chorando e “transida de frio” (p. 516). Ora, voltamos a Bandeira, desta feita com “Os Sapos”, de que a expressão “transido de frio”, ficou famosa e, por conta do ritmo binário do pentassílabo, atrelou-se na mente do leitor:
“Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo cururu
Da beira do rio...”
Não há, portanto, como o tradutor não se deixar levar pelo seu horizonte de expectativa, sobretudo o literário, ainda que as palavras na outra língua, no caso, o russo, possam ser as mesmas.
Ressaltemos, como conclusão, que em momento algum as alterações ocorridas no processo tradutório de Paulo Bezerra são violências ou invencionices, com relação ao texto original. Elas são fruto de uma bem urdida trama entre a estrutura do texto, o seu contexto e o horizonte de expectativa do tradutor, cujos cuidados e critérios demonstram um respeito ao que se traduz e ao leitor.