Saio do barbeiro (falo “barbeiro” por algum obscuro resíduo machista; o certo hoje é dizer “cabeleireiro”) e vou caminhando pela praia. De máscara. Penso na crônica que devo escrever. Qual vai ser o assunto? Vou devagarinho pela calçada, sentindo-me recomposto em meu aspecto e, sobretudo, aliviado com os fios brancos – hoje são tantos! – que ficaram no chão. O barbeiro (ou cabeleireiro) fez um trabalho ao mesmo tempo estético e higiênico, decepando-me as marcas hirsutas de velhice. Tanto desbastou, que me sinto mais moço. E olho com uma euforia antiga, um quase adolescente vigor de espírito, a paisagem e as pessoas que passam por mim.
Qual vai ser o assunto? Penso na crônica como num dever e, por conta disso, alheio-me do cenário e cogito temas sérios – quem sabe, o número de mortos pela covid-19? Ou a inflação, que ameaça voltar? Ou ainda, para infundir algum otimismo a este duro momento, os primeiros efeitos da campanha de vacinação? O assunto da crônica é um obstáculo à fruição deste momento livre, em que gozo o prazer de caminhar sereno e só. Não quero mais pensar nele.
E vou andando – já quase me esquecendo de que, chegando em casa, devo escrever o texto. No momento quero o pretexto, a desocupação, a pura vida desobrigada de reflexões e registros. Passam por mim quatro religiosos – duas mulheres com longas saias brancas e dois homens de ternos também brancos, todos com grossas Bíblias na mão. Conversam e riem inocentes como carneirinhos. E, pelo jeito, são felizes – felizes em Cristo.
Eis uma particularidade que para eles, e também para mim, faz toda a diferença. Não há felicidade sem escolha e sem restrição. Talvez a felicidade seja um prêmio à renúncia, e só se dê verdadeiramente aos que, de coração resignado e alegre, sabem se limitar. Quem tudo quer, tudo cede. Penso nessas coisas com tristeza e prossigo o meu caminho. Antes de perder os religiosos de vista ouço um deles dizer aos companheiros “É juá!”, mostrando-lhes uma árvore que há em torno do Hotel Tambaú. Não conheço “juá” e também olho, curioso. Mais do que a planta impressiona-me o seu nome, que ali soa rasgado e luminoso: “Juá!”. Dito por uma dessas almas cândidas, mais parece um balido de alegria.
Vou em frente, sentindo o vento do mar. Para esquecer o assunto (ou, antes, a falta dele), paro na primeira barraca e tomo uma água de coco. A tarde é grave, escurecida, e o mar tem um aspecto enigmático e distante. Em sua quietude ríspida e roxa, não é água, não é sal, não tem ondas nem marulhos. O seu dorso tem a textura inteiriça de uma aquarela. Sem a habitual ternura compassiva, própria de certos matizes de verde ou azul, ele parece nos repelir fisicamente. Esse é um mar apenas para ser visto, e assim mesmo com reservas, pois de nada serviria aos banhistas nem aos sonhadores (além do mais, o banho está proibido). É um mar envolvido consigo mesmo, prisioneiro da coagulada desmesura de suas águas. Um mar que não concede ao olhar humano, por mais necessitado e piedoso, nenhuma espécie de salvação. Prefiro olhar para a rua semideserta, que em nada antecipa o movimento comum às noites de sábado. Quem sabe esse não seria um bom tema? Em casa vou pensar no assunto.
Bom mesmo, no entanto, é não pensar em assunto nenhum. E depois de caminhar olhando a rua e os poucos transeuntes, deixar que tudo isso vá para o papel sem maiores pretensões. Está então decidido, leitor: a crônica de hoje será sobre o que foste lendo enquanto eu com ela me preocupava. Preciso desse acordo para poder gozar o meu resto de passeio. Fica com isto, aproveita-o do melhor modo e vê se me deixas em paz.