Primeiro foi o anjo torto que mandou ser gauche na vida. Atendeu a ordem e tornou-se o sumo poeta brasileiro. Debaixo de mangueiras lia a ...

O sumo poeta

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Primeiro foi o anjo torto que mandou ser gauche na vida. Atendeu a ordem e tornou-se o sumo poeta brasileiro. Debaixo de mangueiras lia a história de Robinson Crusoé. Num meio-dia de luz branda uma voz de ninar vinda dos longes da senzala trouxe acalento, recordava que nunca esqueceu do café quente da preta amorosa, enquanto sua mãe cosendo olhava para o garoto que dormia no berço e o pai campeava pelo mato sem fim da fazenda. Até que despertou para a vida.

O menino Carlos cresceu. Encontrou uma pedra no meio do caminho, descobriu o sentimento do mundo, cheio de lembranças que escorriam pelo corpo na confluência do amor lúdico. Sem nunca esquecer de sua Itabira, de onde herdou a vontade de amar, viu chegar o tempo em que o lugar era apenas uma fotografia na parede. Mais tarde descobriu que seu coração não era maior que o mundo, por isso nele não cabia sua agonia.

A vontade de ser escritor já aparecia quando criança: “Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres”. Eram 24 volumes encadernados, livros demais para um garoto que se encantava com histórias contadas pelos alforriados. Um dia, distante das mangueiras, sentiu saudade do tempo de Itabira, mas Itabira era apenas uma fotografia numa moldura pendurada na parede da sala.

Adolescente, desejou conhecer uma puta, daquelas que habitavam a Rua de Baixo, onde era proibido menino pousar, mas elas arreganhavam os dentes largos quando avistavam o magricela passar.

Depois de grande, virou José. Sentiu-se abandonado, sem perceber gente por perto, na noite fria da cidade grande andava desolado. Sem nome, sem parede nua para se encostar, tateava no escuro, sem cavalo preto para fugir a galope. Viveu como Deus queria.

Um dia reconheceu o amor. A rosa do povo. Foi amando que aprendeu a amar. Percebeu a lição das coisas, vida afora, até chegar os últimos dias de sua vida. A morte galopava a cavalo, inesperadamente, levou seus amores. Como que triturado pela máquina do mundo, entristeceu por um bom tempo. Adeus composição poética que um dia animou Carlos Drummond de Andrade.

O soberaníssimo poeta, que há anos nos deixou, em séculos vindouros será lembrado no vasto mundo da poesia. Ele fez sua passagem consagrado pelo povo, deixou uma lacuna enorme nos meios literários, entre os universitários apaixonados, nos meios jornalísticos carentes de símbolos e nos círculos acadêmicos porque era uma referência na Poesia do País onde nasceu.

Ele continua vivo na sua poesia, nas suas crônicas, nas suas entrevistas à imprensa. Viveu os sonhos que nos faz sonhar, e sonhado construiu em rima um mundo de poesia, um espaçoso mundo mesmo não se chamando Raimundo.

Durante sua vida, trouxe até nós alguma poesia, ressaltou o brejo das almas, verdejante e florido, onde teve o sentimento do mundo, como José que foi ao Egito para reconstruir a vida, encontrou a rosa do povo que o inspirou a escrever novos poemas, para compor um claro enigma. Quando sentiu saudade de Minas, tornou-se um fazendeiro do ar e assim, conseguiu passar a vida a limpo, descobriu a lição das coisas e as impurezas do branco com o poder ultrajovem que carregava consigo.

Andou com a viola no bolso, teve a paixão por uma moça que tinha a boca de luar, recordou a vida em três tempos (boitempo), para depois escrever o discurso da primavera e algumas sombras numa linguagem de prosa e verso. Dizia que amar se aprende amando, aos olhos do poeta, o corpo da mulher exibe beleza, num amor natural.

Houve uma época que, fazendeiro do ar, contemplava a paisagem do mundo numa cadeira de balanço, onde refletia sobre as impurezas do branco, relembrava as pedras que encontrou no meio do caminho. Na cadeira de balanço passou a vida a limpo.

Drummond nunca se fartou em escrever poesia, com seu canto confidencial e de muita esperança. Façamos como ele, sentando-se no chão desta cidade às cinco horas da tarde para contemplar a flor que nasceu entre as pedras, pequena, mas uma flor amarela, mesmo que suas pétalas não se abram nem exalem perfume.

Afinal, o menino Carlos, orientado pelo anjo torto a ser gauche, tinha o sentimento do mundo, por isso é nosso sumo poeta.

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