Imagine um homem que acredita estar sendo traído pela mulher. Imagine que, quando ela aparece morta, ele é preso e se metamorfoseia. Imagine que, ao sair da prisão, logo em seguida, ele se depara com uma versão loira da falecida mulher morena. É possível conceber tudo isso? Sim. Tratando-se de David Lynch, tudo é perfeitamente possível e, porque não dizer, plausível. Esqueça, porém, uma narrativa convencional e lógica. O surreal aqui fala mais alto. Bem mais alto.
A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997, EUA) é um filme que sintetiza todas as obsessões do estranho mundo do aclamado e cultuado diretor norte-americano: nele encontramos o sonho, a sexualidade, o desejo cego, o irracional, o mistério, a loucura, a angústia, a incomunicabilidade, a perda, o destino trágico.
Em clima de pesadelo sobrenatural, Lynch nos oferece uma trama delirante acerca da nossa natureza que nos remete aos melhores exemplares de Luís Buñuel. A obra, extremamente autoral, não está entre as mais badaladas do diretor, mas é um instigante mergulho no lado mais sombrio da alma humana.
Há outros grandes filmes de Lynch, clássicos contemporâneos, que merecem ser vistos e revistos com certeza, tais como O Homem Elefante, Veludo Azul e Coração Selvagem. A Estrada Perdida, todavia, sempre me pareceu um apanhado geral de toda a exímia técnica cinematográfica do diretor, que envolve elementos surreais, o cuidado com a trilha sonora — a presença do compositor Angelo Badalamenti, com sua música onírica e perturbadora, é constante —, o experimentalismo, o uso da luz como um signo impactante da trama, a bela e estilizada fotografia, que também não deixa de ser aterrorizante.
É paradoxal a forma como o diretor utiliza boa parte dos movimentos de câmera: uma estória sem muito nexo com a lógica formal é contada com marcações de cena até bem acadêmicas e esquematizadas, como nos melhores momentos de Kubrick. Isso é algo que acompanha Lynch há bastante tempo e caracteriza de forma marcante o seu estilo. A câmera “nervosa” e realista, presente, por exemplo, nos primeiros filmes de Scorsese, é deixada de lado. O universo delirante e particular de David nos atinge de outro modo. Suas garras sombrias cortam nossas entranhas de outra maneira. Suas obsessões invadem nossas mentes de forma sutil.
Impressiona a cuidadosa direção dos atores em cena. Não há um personagem fora do lugar ou do contexto fantasmagórico do audacioso diretor. Toda a ação nos conduz a uma longa jornada adentro de nossos desejos mais obscuros. É um filme que muitos psicanalistas invariavelmente adoram e endeusam, servindo de terreno para o infinito exercício de teses freudianas. É bem factível que tentem relacionar diversas cenas com embates que ocorrem em nossa psique: ego, id e superego digladiando-se numa luta sem fim etc etc etc. O diretor, contudo, vai mais além, pois o seu objetivo final é mesmo “brincar” com os amplos recursos da arte da montagem cinematográfica. Quem ganha com isso é o amante do bom cinema, se conseguir embarcar nas viagens insólitas que a película propõe: eis o cinema pelo cinema, ou seja, as imagens que chocam por si mesmas e desafiam a própria realidade, sem uma preocupação com a lógica e o racional – um retorno a Um cão andaluz de Buñuel e Dalí –, com reverberações, é claro, no clima igualmente surreal da série Twin Peaks, outro tour de force impressionante de Lynch.
Não se preocupe em analisar em demasia o significado por trás de cada cena de Lost Highway: o mais importante é se deixar seduzir pelo poder alucinógeno das imagens. Não há regras, não há um caminho certo a ser seguido. A estrada se perde e se encontra na própria vida. Há um quê felliniano ao longo do filme. Aliás, um cruzamento entre Fellini e Marilyn Manson(!) – não pude evitar esse spoiler... Ao final desta intrigante e assustadora estrada, estaremos perplexos e extasiados. Quer sensação melhor que essa?