Quando Epitácio Pessoa, jovem ministro de Campos Sales, decidiu confiar a Clóvis Bevilacqua, seu contemporâneo da Faculdade de Recife, a codificação das nossas leis civis, Ruy Barbosa virou a fera que era de esperar do jurista de opulenta expressão da língua no pináculo do seu prestígio. “É um rasgo do coração e não da cabeça” – reagiu certamente seguido pela opinião de todo o Brasil, exceção do Ceará. E entre decorrências grandes e pequenas, réplicas e tréplicas, veio a polêmica célebre entre Ruy e o baiano Ernesto Carneiro Ribeiro.
O fato é que, ao cabo de seis meses, o modesto jurista da escolha de Epitácio, desembarcado de um Ita do Norte, entrega pronto e acabado um projeto tentado antes por nomes como Teixeira de Freitas e Nabuco de Araújo. Considerado perfeito por uma comissão de juristas com representação da maioria dos estados, o projeto vai ao parlamento. E aí vem a desforra de Ruy, liderando o debate crítico dentro e fora do legislativo, atrasando a aprovação em quatorze anos, promulgado e publicado no governo de Venceslau Braz.
Estou revendo isto em “Retratos de família”, de Francisco de Assis Barbosa, publicado no mesmo ano da morte de Bevilacqua. O grande biógrafo de Lima Barreto conversa com uma das filhas, D. Dóris, ao saber que algumas instituições mobilizavam-se ou simplesmente cogitavam de incorporar a imensa biblioteca que será encontrada já fora das estantes, numa montanha de pacotes povoada dos gatos, pombos e cachorros que, com a casa e os direitos autorais do Código, ficara de herança para as três filhas.
Mas Dóris resiste enquanto pode a propostas de Oswaldo Aranha, que pretendia levar a biblioteca de Clóvis para o Itamarati. Na Universidade do Brasil querem fazer a mesma coisa, com a promessa de nomear a filha como bibliotecária. Vem alguém dessas entidades e se apressa em desmontar a biblioteca.
“ – Não quero que mexam em nada. Para mim, papai e mamãe continuam vivendo aqui.” A casa resultou de um empréstimo da Caixa Econômica. As filhas ficaram vivendo dos direitos autorais do “Código Civil comentado” e do “Direito das coisas”, pagos pontualmente pela Livraria Francisco Alves.
“Pobre, sem vaidade, sem ambições, Clóvis Beviláqua recusou todos os títulos, honrarias e situações: até mesmo à Academia deixou de pertencer. Quiseram fazê-lo presidente do Ceará, não quis. Deputado, senador, também não quis. Hermes da Fonseca ofereceu-lhe uma cadeira no Supremo Tribunal, convite reiterado por Washington Luís, vinte anos depois. Não quis. (...) Na sua modéstia, jamais possuiu um smoking. Só uma vez deixou-se enfarpelar para comparecer a uma festa de estudantes no Teatro Municipal, em homenagem a Teixeira de Freitas. O presidente da associação, ao convidá-lo, encontrou este óbice: “Eu gostaria muito de comparecer mas não tenho casaca”. O rapaz resolveu o problema: alugou uma.
Clóvis fez a conferência, a solenidade sob a presidência de ninguém menos que Ruy Barbosa, que terminou proclamando no adversário da véspera “o maior jurista brasileiro de todos os tempos”.