Poderíamos chamá-la de lutadora ou de guerreira e estaria muito bem, apesar do clichê. Ela foi (é) tudo isso e muito mais. Uma vencedora, por exemplo. Mas vamos chamá-la de brasileira, simplesmente, porque aí estará tudo incluído, acertos e erros, principalmente os primeiros, que errar é humano e ninguém é santo. Estou falando de Elza Soares, a cantora que, nonagenária (91 anos), nos deixou há poucos dias e teve sua extraordinária trajetória contada pelo jornalista Zeca Camargo no livro “Elza”, da Editora Leya.
Elza SoaresArq. Nacional + Ed. Leya
Inevitável lembrarmos sua conturbada relação afetiva com Garrincha, ainda casado quando iniciou o namoro com Elza, fato que, no Brasil provinciano da época, transformou-a numa espécie de inimiga pública da conservadora família brasileira. Mas ela enfrentou a barra. Do mesmo modo que enfrentou o alcoolismo e a vida desorganizada do genial jogador, seguindo adiante após a morte do companheiro e provando a todos que tinha vida e valor próprios, ao ponto de tornar-se gradativamente uma das maiores divas de nossa música popular.
Em entrevista ao jornalista Thiago Ney, da Folha de S. Paulo, ela afirmou, do alto de sua rica experiência:
“Não teria feito nada diferente. Nem teria como, foi muito difícil. O caminho que vem, a gente abraça. A gente quer o melhor, mas a gente abraça aquele que dá”.
Elza e GarrinchaExtra
Sim, a gente abraça não o caminho que quer, mas o que dá. Ela abraçou o caminho que deu, e nele lutou e persistiu, e se tornou a grande estrela prevista por Ary Barroso, mais de sessenta anos atrás. Dela pode-se dizer que tudo viveu, tudo sofreu e tudo venceu. Na raça, sem encontrar portas abertas nem tapetes estendidos, como costuma acontecer com aqueles e aquelas que, vindos do povo, têm que abrir seu próprio caminho. Como quem, facão na mão, ou nem isso, desbrava uma trilha na floresta hostil.
Callanga ▪ Wikimedia
Sua voz rascante foi única. E por isso foi chamada “do milênio”. Com ela cantou – e interpretou – nossa MPB no que tinha – e tem – de mais autêntico. O samba, o morro, os desencontros do amor, as lutas da vida, tudo isso fez parte de seu repertório, sua forma de participar de sua cultura e de seu tempo. Soube cantar como ninguém a “lata d'água na cabeça” que de fato carregou no morro dos primeiros tempos. E isso fez – e faz — toda a diferença.
Elza Soares é motivo de orgulho para o Brasil mais brasileiro. Mais que um ícone, tornou-se um mito. Partiu serenamente, em casa, como merecem os justos. Deixa um importante legado artístico, mas principalmente um inigualável exemplo de superação. Definitivamente, foi, é e sempre será patrimônio nacional. Mulher, negra, pobre e amante de homem casado, impôs-se ao respeito do país por sua arte, sua força, sua dignidade. Merece, pois, especialmente nesta hora de adeus, o reconhecimento de todos.
Senhoras e senhores, de pé, palmas para ela!