Tem gente achando que eu sou avesso ao progresso, às modernidades. Nada disso, mas há coisas que nasceram e vão ficar do jeito que foram inventadas. Para sempre! Querem um exemplo? O limpador de para-brisas. Ou não é? O tempo passa, os modelos de carros evoluem, mas aquelas duas varetas desajeitadas são daquele jeito desde o tempo do “Ford Bigode”. Não vislumbro alguma possibilidade de mudança a curto prazo.
Outra é o livro. Inventaram o ebook, Essa nova forma de edição causou alvoroço no começo, foi inicialmente um transtorno para as livrarias, mas ficou por aí. Não decolou. Acho que sei um dos motivos. Ebook não tem cheiro. Eu, particularmente, gosto de ler coisas que têm cheiro. Livro bom tem que ter cheiro.
Essa minha conclusão veio à tona dias atrás. Estava eu lá na Livraria do Luiz quando vi uma moçoila dando uma espiada nas prateleiras. Nem vou falar daquela belezura em forma de gente que era essa criatura, mas chamou-me a atenção a forma como ela tirava um livro da estante e o examinava. Era uma inspeção minuciosa e delicada. Olhava a capa, lia o que houvesse na contracapa, depois abria o tomo, fechava os olhos e cheirava aquelas páginas com delicadeza tal que eu chamaria aquilo de um beijo olfativo. Depois o devolvia ao local de origem e em seguida ia distribuir essas gentilezas para outro felizardo acomodado nas tábuas daquele estabelecimento.
Mas, meus leitores, minhas queridas leitoras, vou mais além. Cada livro tem um cheiro especial e tem a ver com o que está rabiscado em suas páginas. Agora mesmo, para dar veracidade a essa premissa, peguei em minha estante o “Estrela – Poesias reunidas da vida inteira” de Manuel Bandeira. Está velhinho o coitado, edição de 1966, comigo há pelo menos 50 anos. Abri. Lá estava guardada uma cartinha dessa que ainda divide comigo travesseiros, contas de água e de luz. Uma efusiva declaração de amor. Nem mostrei para ela, pois poderia despertar arrependimentos. Devo muito tempo atrás ter lido e guardado ali. Então, coloquei as ventas naquele livro e dei uma cafungada naquelas páginas. Abri bem na 104 onde estava “Evocação ao Recife”. Fechei os olhos e senti cheiro de coisa velha, antiga, cheiro de guardado. Fiquei assim por uns instantes até que vieram os eflúvios de mangue em seguida o aroma de caju e cajá-manga. Senti-me ali, brincando de chicote-queimado na Rua da União.
Resolvi esticar minha experiência e abri um Drumond. Cheiro? Um pouquinho do odor de ferrugem que deve ter vindo lá das bandas de Itabira. “Mundo, mundo, vasto mundo/ Se eu me chamasse Raimundo/ Seria uma rima, não seria uma solução” Drumond escreveu. Mas se fosse eu? Está aí uma poesia que não mexe comigo e que me desculpem fãs empedernidos desse poeta, mas ali não senti cheiro algum, de ferrugem, quiçá.
Não ia deixar de colocar o nariz no Eu do nosso Augusto. E o que percebi? Bafo forte de amoníaco saindo de catedrais imensas.
Nos de Zé Lins deu para notar o caldo da cana azedando e entrando pelas minhas narinas. É como se eu estivesse no Engenho do Corredor vendo a moagem ao lado de Carlinhos.
Aquele olor do chão seco que recebe a primeira chuva da estação das águas, cheiro de terra que acabou de ser molhada é só abrir Graciliano ou Raquel.
Está aqui na minha mão o “Incidente em Antares” do Érico Veríssimo. Cheiro do quê? De costela de boi sendo preparada com sal grosso e recebendo o calor de carvão ardendo no buraco aberto no chão. Ainda odor de pólvora e sangue. Para completar pouquinho do de pinhão assado na borralha do fogão à lenha.
Ah, e o de Cassiano Ricardo? Que delícia. Sinto o hálito doce da primeira namorada. Beijos nos bancos da Praça Afonso Pena, os mais ardentes no Cine Palácio. Como diria o poeta de “ A flauta que me roubaram”,,,Era em São José dos Campos.
Machado? José de Alencar? Joaquim Manuel de Macedo? Cheiro de lavanda, alfazema. Perfumes antigos exalados na Corte ou nas mesas da Confeitaria Colombo.
Houve um que não arrisquei abrir e muito menos cheirar: O Cortiço de Aluísio de Azevedo. Tive medo de sentir bafejos pouco agradáveis. como os do sovaco de Romão ou Bertoleza. Mas notei o sargaço nas areias das praias de Salvador para o beijo urgente de Dora e Pedro Bala.
Daqui às estepes gélidas para abrir um Dostoievski, um Tolstoi e sentir o calor de um samovar fumegando. Parei por aí quando a costela que me falta à anatomia advertiu-me:
- Endoidou criatura? Tanta coisa no mundo pra fazer e ficar aí cheirando livros...
Foi só, nem cheirei meus amigos aqui da terrinha. Tudo isso aqui para perguntar aos que perderam seu tempo lendo essas garatujas: Ler uma obra no formato ebook é ou não é a coisa mais sem graça do mundo? Livro que é livro tem que ter cheiro. Não é assim?