Deve ter ocorrido séria mudança de comportamento dos filhos desta cidade em seu gosto e zelo por ela.
Em algum tempo houve esse amor ou interesse? Mais que se tenha deixado ruírem altares e igrejas, certamente salvou-se o principal. São Francisco, São Bento, Carmo, a mais rogada de todas que é a Misericórdia, restam a garantir que o sentimento religioso é sempre superior à solidez do calcário. Fora dele, desse sentimento que mais parece temor que devoção, não temos sido mais que descuidados. André Vidal de Negreiros, herói de toda uma nacionalidade, veio ter seu retrato numa galeria de palácio no governo de Camilo de Holanda. Deve permanecer no mesmo lugar, na parede de frente com Roosevelt e o famoso Barão do Rio Branco.
Em 1951, quando aqui cheguei, vi dr. Clóvis Lima, do Instituto Histórico, cobrar do prefeito Oswaldo Pessoa uma estátua para o tamanho de André Vidal, na altura das nuvens ou da que se vê do marquês de Pombal numa rica praça de Lisboa. Afinal o marquês a reconstruiu. Nosso herói maior terminou num busto, deslocado na última reforma da praça para um estrado alto de algumas toneladas de cimento, o busto sob um arco em forma de forca.
Camilo, que ornamentou a cidade, entre outras obras, com a balaustrada de Trincheiras, cercada do casario das elites açucareira, algodoeira e burocrática de então, mereceu busto há três ou quatro anos arrancado da base. Foi posto lá por Oswaldo Pessoa, numa reparação à degola política que Camilo sofrera de Epitácio. E setenta anos depois, com a elite dirigente em sua maioria de formação universitária, tratamos nossa memória, nossas prendas culturais com um desprezo que os autores das itacoatiaras sangraram as unhas para evitar.
A beleza de anfiteatro que José Américo pinta no guia da cidade publicado na lista telefônica de 1969 e republicado, num mimo de álbum, na gestão do prefeito Ricardo Coutinho, esse rico mirante que a cidade começou a perder quando não soube disciplinar a ocupação urbana, foi soterrado, já não existe. A favela passou a trepar nas barreiras e cobrir o vale de barracos e casebres. E o que foi comparado “a um campo de futebol com arquibancadas feitas pela natureza, dominando o fundo plano” passou a morro superpovoado. Caso se pudesse dizer que os sem-casa houvessem se apoderado do recreio paisagístico da elite, seria, afinal, uma vitória. Mas o que se vê é desolador para os merecimentos históricos e paisagísticos da cidade.
A maioria dos gestores atua sob pressão. A pressão de classe do automóvel, por exemplo, que chega a provocar cuidados e zelos até exagerados. Mas quede a pressão da elite cultural pela conservação da antiga linhagem? Onde está a descendência orgulhosa dos que se encarnaram nos ornatos e lavores daqueles castelos? A última vez que vi alguém entrar e sair de um daqueles palacetes esse alguém era um Nóbrega. A rua que começava depois do palácio com a casa do barão do Abiahy, foi arrecadando Ribeiros, Machados, Holandas, Soares, Pessoas, alcançando o fastígio de arte e riqueza no belvedere que o próprio presidente Epitácio estrilou.
Cícero reavivou a Silva Jardim, habilitando o velho casario ao comércio lojista de tecidos, confecções, aviamentos. Começou fazendo da antiga 4400 um shopping popular, tal como fizera na Duque de Caxias de casas fechadas. Quem sabe se, antes que tudo acabe, ele desaperte olhos fundos por ali?