Muitos amigos, não sendo da área específica de Letras, me perguntam qual a diferença entre narração e narrativa. Tentarei uma explicação que possa ser didática, sem fugir das questões técnicas. A narrativa é o todo, é o plano geral que encerra uma história que se conta. Dentro desse todo, há vários meios de que o narrador se utiliza para contar a história. Estes meios chamamos de recursos narrativos. Tomemos, como exemplo, um poema épico, em lugar de um romance ou de um conto, narrativas mais fáceis de se evidenciar a diferença que aflige várias pessoas.
A Eneida é um poema narrativo, portanto uma narrativa, e há vários recursos utilizados por Virgílio para narrar a história de Eneias. E é uma narrativa porque necessita de um narrador, alguém distanciado do fato, no tempo e no espaço, e que não participa necessariamente da história, para contá-la. No caso específico da Eneida, o narrado é um poeta, como acontece em todos os poemas épicos.
A estrutura de que se compõe essa narrativa, como se trata de um poema épico, é constituída, de Proêmio, Narração e Epílogo. o Proêmio se divide em Proposição, parte inicial que propõe cantar um determinado assunto (verso 1-7), e Invocação, que também se encontra no início do poema, mas pode vir em outras partes – na Eneida, há, ao menos, 5 Invocações diferentes –, como uma parte essencial de pedido de ajuda do poeta às Musas, detentoras de um saber, que se guarda na memória, além de protetoras das artes e do conhecimento (versos 8-11). É preciso que se diga que esta separação entre Proposição e Invocação nem sempre é tão nítida, como o ocorre no poema virgiliano.
A Narração é a parte principal do poema, pois constitui-se de cerca de 95% do assunto, iniciando no verso 12 do Livro I e só terminando no verso 952 do Livro XII, o último do poema. No caso da Eneida, não existe o Epílogo, como em outros poemas épicos, a exemplo da Ilíada e da Odisseia, tendo em vista que a obra de Virgílio não foi terminada, tendo sido publicada postumamente, a pedido de Otávio Augusto César, em 17 a. C.
A parte integrante do poema épico chamada de Narração está, por sua vez, constituída dos seguintes recursos narrativos: a narração propriamente dita, que se entende como o ato de narrar fatos e acontecimentos, de modo linear ou não; o monólogo, que é uma fala de si para si; o discurso ou diálogo direto, que ocorre quando algum personagem se dirige a outro e o narrador reproduz com exatidão o seu discurso, as suas palavras; o discurso ou diálogo indireto, quando o narrador fala pelos personagens, dizendo o que eles diriam se tivesse sido usado o discurso direto, e a descrição, que é a expressão de detalhes relativos a pessoas, animais, objetos, lugares etc. Excepcionalmente, ocorrerá a narração dentro da narração, caracterizando uma metanarrativa ou narrativa hipodiegética, como veremos nos Livros II e III. Peguemos o Livro I da Eneida, como exemplo.
O Livro I, Eneias na Líbia, é constituído de 756 versos, que podem ser decompostos da seguinte forma:
Proposição: versos 1-7
Invocação: versos 8-11
Narração: versos 12-756
No tocante à Narração, vejamos como ela se constitui:
A narração propriamente dita começa no verso 12, estendendo-se até uma parte do verso 37, quando começa um monólogo de Juno que segue até o verso 49. Após essa interrupção, a narração continua até o verso 64, quando Juno se dirige a Éolo, a divindade que preside os ventos. Trata-se nesse instante de um diálogo ou discurso direto, que ocupa os versos 65-75. Éolo, por sua vez, faz a sua réplica, em novo discurso direto, entre os versos 76-80. Em ambos os casos, o que caracteriza o discurso direto é o fato de que Juno e Éolo têm as suas palavras reproduzidas ipsis litteris pelo narrador.
A narração é, mais uma vez, retomada no verso 81, seguindo até uma parte do verso 94, quando surge um novo monólogo, dessa vez de Eneias, entre os versos 94 e 101. Retoma-se a narração no verso 102 até o verso 131, quando vemos Netuno expressar-se num discurso direto, sem réplica, aos ventos Euro e Zéfiro, entre os versos 132-141.
Retoma-se, mais uma vez, a narração no verso 142, alongando-se até o verso 197. No verso 198, inicia-se um discurso direto de Eneias aos companheiros, novamente sem réplica, que só acaba no verso 207. A narração é retomada no verso 208 até parte do verso 229, quando Vênus, num discurso direto interpela Júpiter, entre os versos 229 e 253. Após breve narração introdutória da réplica de Júpiter, entre os versos 254-256, dá-se o discurso direto do deus, compreendendo os versos 256-296.
A narração é retomada entre os versos 297 e parte do 321. Do 321 ao 324, vemos novo discurso direto de Vênus. Após uma breve narração introdutória da réplica de Eneias, no verso 325, acontece o discurso direto de Eneias, entre os versos 326-334. O verso 325 começa com uma brevíssima introdução ao discurso de Vênus, que se estende até o hemistíquio do verso 370, cujo outro hemistíquio serve de introdução até o verso 371, da resposta de Eneias, em discurso direto, que se alonga até o verso 385, onde se repete a mesma estrutura do verso em dois hemistíquios, num misto de discurso direto e narração introdutória de novo discurso, versos 385-386. Do verso 386 ao 401, dá-se o discurso direto de Vênus, em resposta a Eneias. A narração é retomada nos versos 402-406, introduzindo o final do diálogo com o discurso direto de Eneias, nos versos 406-410, que Vênus já não ouve.
Do verso 411 ao 436, a narração é retomada, sendo brevemente interrompida, no verso 437, para uma interrogação de Eneias, em um monólogo exclamativo, em voz alta. Do verso 438 à metade do 459, à narração se mistura a descrição. Eneias, então, se dirige a Acates, em discurso direto, sem direito à réplica, da segunda metade do verso 459 até o verso 463.
A narração segue o seu curso a partir do verso 464 até o verso 522, mais uma vez mesclada de descrição. Do verso 523 ao 558, temos o discurso direto de Ilioneu à rainha Dido. Nos versos 559-561, a narração é retomada, apenas para introduzir o discurso direto de Dido, em resposta a Ilioneu, o que ocorre entre os versos 562-578. Outra rápida retomada da narração, entre os versos 579-581, para introduzir o discurso direto de Acates a Eneias, entre os versos 582-585, sem direito a réplica. Nova retomada da narração, versos 586 até parte do verso 595, quando se dá o discurso de Eneias a Dido, estendendo-se até um pouco mais da metade do verso 610. Na parte final do verso 610, a narração, que se estende até o verso 614, ocorre, de modo a introduzir o discurso direto de Dido, em resposta a Eneias, que vai do verso 615 até o verso 630.
Do verso 631 ao 663, a narração é retomada. A partir do verso 664 até o verso 688, temos o discurso direto de Vênus a Cupido. Retoma-se a narração no verso 689 até o verso 730. Do verso 731 ao 735, Dido fala em discurso direto, fazendo uma prece a Júpiter. A narração é retomada a partir do verso 736 ao 747, introduzindo na parte final do Livro I, um discurso indireto de Dido a Eneias, versos 748-752, para finalizar com um discurso direto de Dido a Eneias, cuja resposta será a narrativa de Eneias, em primeira pessoa, que inicia no Livro II e só termina no Livro III, complexidade narrativa que será discutida outra hora.
Falando em complexidade narrativa, destacamos duas passagens dentro do Livro I, para mostrar que, muito frequentemente, estes recursos não são puros. A separação que fazemos entre eles é didática e, ainda que eles possam aparecer isoladamente, o mais frequente é que eles se mesclem. A primeira passagem se situa entre os versos 227 e 296. O que temos aí? Do verso 227 à primeira cesura do verso 229 – ādlŏquĭtūr Vĕnŭs –, que corresponde aos dois dáctilos iniciais, existe um trecho de narração que prepara o discurso direto, inclusive com a presença de um verbo dicendi, o verbo introdutor do discurso, no caso adlŏquor, na sua forma adlŏquĭtur. Do restante do hexâmetro – Ō quī rēs hŏmĭnūmquĕ dĕūmquĕ –, correspondendo a um espondeu, dois dáctilos e um troqueu, marca o início do discurso direto de Vênus dirigido a Júpiter.
O diálogo direto, que reproduz a fala de Vênus, torna-se, nesse momento uma narrativa, pois a deusa interpela Júpiter a respeito do destino prometido a Eneias, seu filho, e para isto ela vai comparar Eneias com outro troiano, Antenor, a quem nada foi prometido, de quem ela faz o histórico narrativo da sua fuga de Troia até a sua chegada à Ilíria, passando da Dalmácia, para a Ístria, no reino dos Liburnos, atingindo a fonte do rio Timavo e fundando a cidade de Patauium (atual Pádua). Nesse local, Antenor, tranquilo, repousa em paz (verso 249). Em sua interpelação, cobrando o cumprimento do destino de Eneias, Vênus lembra ao pai que ele, Júpiter, é quem rege os destinos dos homens e dos deuses, com leis imutáveis, uma vez proclamadas (versos 229-230).
O mesmo ocorre no discurso direto de Júpiter, em resposta a Vênus, após três versos introdutores do discurso (254-256), onde se vê a presença do verbo dicendi *for, na sua forma fātŭr. Júpiter de dirige à filha e a tranquiliza, desfiando o destino de Eneias, em sua resposta, com o discurso direto passando a ser uma narrativa, em forma de narração, da construção de Roma, desde a saída de Eneias de Troia, sua chegada ao Lácio, as lutas que ele vai enfrentar com Turno, a fundação do reino de Lavínio, a fundação de Alba Longa, a fundação de Roma, até chegar a César e a Augusto. Ou seja, ambos os discursos diretos, o de Vênus e o de Júpiter, tornam-se uma narrativa, no momento de sua realização, que se utiliza da narração como recurso.
Um texto exemplificativo sobre o assunto, por mais que se queira didático, não é suficiente para esclarecer toda a complexidade que envolve a narrativa e seus recursos. Cabe ao leitor, se quiser ir além da leitura de fruição e construir um aprendizado mais sólido a respeito do assunto, ler anotando e procurar estabelecer as diferentes formas de expressão do discurso, com relação ao texto que ele tem em mãos. Ao leitor que se contenta apenas com o prazer da leitura, as explicações não se fazem necessárias. É pular esta e se deliciar com o texto.