Acho que é isso. Só pode ser. O coração está com dificuldades para suportar algumas destemperanças da vida. Qual coração? O meu, é claro. ...

Coração cansado

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Acho que é isso. Só pode ser. O coração está com dificuldades para suportar algumas destemperanças da vida. Qual coração? O meu, é claro. Essa engenhoca que me bombeia sangue para as artérias e que, segundo alguns poetas, é o órgão que manobra nossos sentimentos, sejam eles as paixões e as saudades, anda me maltratando. Pois, meus amigos, minhas amigas, ando padecendo com as fadigas de minhas coronárias. Esses dias entre o Natal e o Ano Novo, não foram fáceis.

O que andou me dando umas espetadas foi a constatação de que minha saudade se dividiu entre duas gerações. Fiquei eu ali na fronteira. Deu um lado os que vieram antes de mim. Nesta banda, meus tios e tias que resistem às marcas cruéis do calendário, com eles meus primos, os amigos de sonho e de copo, tanta gente com moradia garantida no condomínio de minhas mais ternas lembranças. Do outro lado da divisa os que vieram de mim, filhos, filhas e já quatro netos.

E o que me aporrinha o juízo? Muito simples, está difícil misturar essa gente. Nesse final de ano decretei que merecia um repouso e bati asas rumo à geografia de minhas origens. Fui a Campos do Jordão, berço de boa parte daquela primeira turma, a parentalha. Bati, como se diz, com os burros n’água. Cadê aquele povo? Só pude ver o Dito da Matta, primo de meu pai, que naqueles anos de chumbo enfrentou a ira das baionetas e escondeu esse meu herói nas brenhas da Mantiqueira. Isso há quase 60 anos atrás. Fui lá dar meu abraço devedor das coragens desse meu primo distante. Dito colecionando 97 primaveras e ainda no trabalho, no comando de quase duas centenas de funcionários de sua construtora.

Mas foi só. Lá na Rua Pasteur 124, a casa de minha avó estava fechada. Ninguém por ali. Aquele pedacinho de chão foi palco de minhas quimeras infantis. A residência ganhou roupa nova. Tia Nice tem bom gosto e cuida bem daquele cantinho, o mais doce de todo mundo. Não vi tia Bety, a prima Virgínia, o primo Marcos. Tia Dalila e meu querido “tio de contrabando”, o Tó, faz tempo que não aparecem por lá. Só deu para matar a saudade das minhas araucárias, sentir o cheiro das montanhas, respirar o ar de altitude. Fui ver a escola que leva no nome de meu avô. Gabriela, minha raspa de tacho, o neto Caio e as irmãs Vanessa e Olga estiveram comigo, presenciaram minha alegria de rever aquelas montanhas e meu desapontamento pelos abraços que não pude dar.

O tio Orlando e sua turma não tive tempo de ver. Agenda espremida não deu para esticar as canelas até a capital paulista. Tive que ficar por aqui.

Montanha abaixo, a conversa em casa de Ludmila e ela nem colocou o samovar para exercer sua funções, mas foi uma doce anfitriã (ela e o marido Livinstone), falamos de literatura, e escorregamos pelo humor e pelas saudades. Foi muito bom.

Vanessa me acolheu em sua casa, fez-me balançar o esqueleto em caminhadas matinais para rever a São José dos Campos que já foi minha e hoje pouco tem a ver comigo. Está linda essa minha cidade, linda e triste. Esplendorosa em mobilidade urbana e pobre em manifestações culturais. Fiquei por aqui e ainda deu tempo de tomar umas na casa de Dudu, ver Dôra que não envelhece e o neto japinha, o Luca, danado que só. No domingo Vanessa, minha adorável tirana, fez-me percorrer exaustivos 6,5 km e pude ver (e andar por eles) o Parque Santos Dumond e o Vicentina Aranha, duas formosuras (já disse que São José está linda), mas depois, um porquinho a pururuca na casa de Agnaldo – que não é nem Rayol e nem Timóteo – mas, Mendes as Silva. Um encontro depois de (acreditem!!) quase 40 anos.

Quantas histórias para rememorar, pena que algumas delas não se podem reproduzir aqui. Por fim, vi o Zé Zanine, hoje arquiteto renomado. No comecinho dos anos 70 fomos presos em Barra Mansa e levamos uma pisa da PE para deixarmos de ser buliçosos e pararmos com aquela loucura de querer derrubar o regime dos coturnos.

Agora a outra parte da divisa, os que vieram de mim. Difícil juntar cinco filhos, quatro netos, genros e noras no último dia do ano. Ariadne veio do EUA com o espevitado Miguel, Larissa com o genro Danilo vieram de São Carlos, Yuri de Campinas mais Jéssica que é daqui (estou escrevendo “from” São José), Iago que é dessa comarca com Gabi, a nora, e o rebento Romeu de alguns dias. Gabriela já instalada em Sorocaba, presente e não desgrudou do velho pai aqui. Celebramos a vida, vimos juntos o ano se extinguir. Juntamos a turma toda num pesqueiro, dia chuvoso, e levamos um passa-moleque dos pacus e tilápias que engordam nas duas lagoas do local. Não morderam nossas iscas.

O que me deixa triste é não poder destruir esses limites, essas fronteiras e juntar essas duas gerações, essa gente toda. Não sei se um dia irei conseguir. Termino aqui revelando que meu pote de saudades está transbordando e perguntará o leitor; o que eu tenho a ver com isso? Muito simples: leitor que é leitor, tem que ser na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, etc, etc. É assim, como num casamento. Era isso, agora fazer as malas e retornar com o coração daquele jeito, cansado de fazer dó.

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