Quando nos aproximamos do sítio, pequena aglomeração rural, inesperadamente um menino saiu apressado de uma casa de taipa, pequena, telha-vã e piso de chão batido. Parou perto de nós, descalço, tinha olhos de sol arregalados e fixos nos estranhos que chegavam. Se corpo tisnado, igual ao de outras crianças que chegavam com algazarra natural à idade.
Não falarei dos motivos que nos levaram àquela comunidade rural nos cafundós de Serraria, localizada na beira de imponente canavial onde as famílias produziram aqueles meninos. Me apegarei ao jeito com que as crianças conversavam conosco, alheias à degradação do seu espaço onde habitavam.
Chamarei de Jesus este menino que esbarrou em nós, mas poderia ser José ou Salomão. As mazelas ao redor onde mora suplantam a dignidade humana, mas não destroem a fé de seus pais, mesmo que a cada amanhecer olhem a panela vazia na trempe, mas agradecidos aos donos das terras que cederam o lugar à beira da estrada para construir seus casebres. Mesmo que distante o sonho, acreditam na construção de um ambiente onde possam criar filhos sem atoleiro na biqueira de casa.
Debaixo da jaqueira pus-me a olhar e refletia sobre o que a vista alcançava. Apalpava um fruto dependurado, enquanto contava as crianças em derredor, quase uma dúzia, quando me vieram à mente cenas de décadas quando semelhantes criaturas raquíticas conviviam nas redondezas do sítio onde nasci, época de desolação e, para enganar a fome, rasgávamos toros de cana ao dente, sem tirar os olhos do horizonte por onde o feitor do engenho poderia aparecer.
Naquela época muitas vezes fiquei na mesma dor, degustava a rapadura puxa-puxa na bagaceira do engenho do vizinho e caminhava pelas mesmas veredas municiado da baladeira, com bornal à tiracolo cheio de seixos miúdos e quicé de faca à cintura, usada para descascar laranja e cortar roletes de cana. Seis décadas depois, percebo que tudo parece do mesmo jeito de quando saímos de Tapuio. Ainda hoje as crianças comem manga verde, esperam o maturi do cajueiro crescer e catam araçás na capoeira para saciar a fome. Procuro entender porque a vida atrofiada é normal para aquela gente.
Perdoe-me a sensação de impotência diante das cenas protagonizadas pelo grupo de meninos sambudos meus conterrâneos, semelhantes aos de diferentes épocas, sempre empurrados pela ganância dos donos da terra e do poder, e pelas mesmas moendas esmagados, convivendo no meio de latrinas, moscas, baratas, ratos e goteiras que perfuram buracos no chão da casa de terra batida. Gente em rasa condição humana, esquecida e maltratada, lembrada somente durante a cata de voto por ocasião de eleições.
Diante dessa fraqueza de espírito, animou-me observar que as famílias carregam esperança, que se agarram a um pedaço de fé, o que ainda lhes resta.
Ficamos admirados como essa gente fica contente com tão pouco, com as migalhas que são jogadas aos cachorrinhos.
Arrebatados pelas usinas, os frutos da terra não chegam até àquelas famílias que, comprimidas num sovaco de uma gruta, nem percebem o horizonte distante dos seus filhos.
O sorriso do menino Jesus nos anima, porque é o mesmo sorriso do menino Jesus de dois mil anos atrás. Sorriso de esperança, mesmo que seu horizonte esteja muito além das moendas que trituram cana.
Naquele dia estava macambúzio, mas esperançoso. Sou um homem esperançoso. Esperançoso como foi padre Ibiapina que perambulava pelos sertões do Nordeste e pelo Brejo da Paraíba, espalhava animação aos corações murchos e acabrunhados. Quando tudo perecia ao sol inclemente, o missionário chegava com a mão estendida, com uma cabaça de água e o agasalho da fé, arrancava o desanimo das pessoas e plantava esperança.
Esperançoso como meu pai que, vendo as plantações sendo queimadas pelo sol inclemente, olhava sobre as serras cortadas pelo Sol do amanhecer, pensando encontrar as nuvens da tranquilidade. Logo os sítios ficavam verdejantes, e então jogava na terra as sementes da bonança.
Não cheguei ao lugar com a mão estendida, pouco alimentei aquelas famílias, nem conduzia a cabaça com água, mas deixei minha porção de esperança e um pouco do sorriso. A certeza de que quanto mais escura seja a noite, sempre há um alvorecer com luzes, assim nos ensinam os poetas místicos.