O historiador inglês Peter Burke, acadêmico de primeira linha (é — ou foi — professor em Cambridge) e colaborador do jornal Folha de S. Paulo, publicou em 2009, pela Editora Civilização Brasileira, uma coletânea de ensaios intitulada O historiador como colunista. Livro erudito e leve ao mesmo tempo, oferece ao leitor reflexões sobre temas os mais diversos, todos de grande interesse cultural, entre os quais destaquei,
pelo inusitado, a fofoca e o boato. Sobre ambos, compartilharei a seguir algumas das observações do referido autor.
Fofoca e boato antigamente eram temas indignos de um sociólogo ou de um historiador. Atualmente não mais. Todos esses assuntos menos “nobres”, digamos assim, hoje interessam — e muito — aos estudiosos. E para isso certamente muito terá contribuído o nosso Gilberto Freyre, pioneiro e inovador nessa área (e em tantas outras), reconhecido e aplaudido internacionalmente, menos na nossa USP, mas isso já é outra história. Vamos então a esses dois fenômenos sociais, tão bem conhecidos pelos brasileiros.
Primeiramente, registremos que tanto a fofoca como o boato são universais. Em todos os lugares eles aparecem e frutificam, tanto em países desenvolvidos como em lugares atrasados. Não se pense, portanto, que são coisas de aldeia — muito pelo contrário. No caso da fofoca, Burke fala numa “microgeografia”, quando a restringe a determinados locais, como, por exemplo, a antiga corte de Versalhes ao tempo de Luís XIV, célebre centro de mexericos sociais, sexuais e políticos, e atualmente os parlamentos, estes mais especializados na disseminação de escândalos propriamente ligados à política. A propósito, aqui cabe inserir uma distinção entre ambos os fenômenos quanto à amplitude, pois enquanto a fofoca é mais pessoal, mais privada e portanto mais restrita, o boato se espalha mais, possui caráter menos pessoal que social, atinge espaços mais amplos. Desse modo, quando malévolos – e quase sempre o são -, a fofoca tende a causar às suas vítimas um prejuízo potencialmente menor que o boato, dada a limitação de alcance que lhe é inerente. Não quer isto dizer que é sempre assim, pois não raro há fofocas que se transformam rapidamente em boato e aí o estrago está feito.
As padarias, as farmácias, os cafés, os bares, as barbearias, os salões de beleza, as praças e lugares assemelhados são tradicionais centros de fofoca. Tais espaços proporcionam às pessoas que os frequentam habitualmente uma familiaridade e uma proximidade que favorece a disseminação das fofocas. E aqui um detalhe: existiriam centros de fofoca masculinos e femininos, os homens fofocariam sobre questões públicas, como política e futebol, por exemplo, e as mulheres sobre questões privadas, como “fraquezas de amigos, vizinhos e inimigos”. As feministas contestam essa diferenciação claramente discriminatória. Para elas, e também para os estudiosos, fofoca não tem gênero.
Como foi ressaltado por Burke, “a fofoca é fundamental na construção, manutenção e destruição da honra ou reputação de uma família ou de um indivíduo. Ou seja, essa atividade privada contribui para a esfera pública”. Sem dúvida.
Já o boato pode ser definido como “um relato breve, anônimo e não verificado de um suposto acontecimento”. O anonimato da origem do boato é a sua característica essencial. E também a não comprovação prévia de seu conteúdo. Ninguém sabe onde surge nem até onde vai o boato. Potencialmente, portanto, é capaz de produzir maiores danos que a fofoca. E à medida que passa de pessoa para pessoa seu conteúdo se altera e, de certa forma, se amplia, porque cada qual acrescenta um ponto ao conto, e assim ele vai crescendo e se espalhando como uma peste, uma pandemia. Imagine-se o campo fértil para o boato nestes tempos frívolos de redes sociais tagarelas e de fake news propositais.
Continuamos com Burke: “Se é insensato acreditar na verdade literal dos boatos, é por certo igualmente insensato descartá-los, pois essas histórias revelam algo das preocupações, dos interesses, das esperanças e dos medos dos indivíduos e dos grupos que as transmitem”. O que significa dizer que, mesmo inverídicos, os boatos fornecem alguma informação verdadeira quanto às suas possíveis motivações, o que é valioso para os psicólogos, sociólogos, antropólogos e historiadores. Pode-se afirmar, nessa linha, que não existem boatos gratuitos. E o povo gosta de dizer que onde há fumaça, há fogo. Sim, mas nem sempre. Por isso, é preciso cautela (e boa-fé) nesse assunto.
A fofoca pressupõe sempre uma ausência: a daquele ou daquela de quem se fala (em regra, maledicentemente). O objeto da fofoca nunca a testemunha, pois sua presença a inibe. Por isso Ariano Suassuna gostava de dizer, com toda razão, que só tem graça falar das pessoas pelas costas. Já o boato é uma espécie de “armação”, algo maquinado e construído no anonimato, com finalidades diversas e definidas, geralmente pouco éticas.
Os boatos, segundo Burke, podem expressar muitas coisas, tais como a esperança na volta de um herói que salvará a pátria (Deus nos livre!), e podem influir na cotação das bolsas de valores, para cima e para baixo. Há quem se prejudique e há quem ganhe com eles. Assim como as fofocas, são como ervas daninhas: não há quem os acabe. Todos nós, direta ou indiretamente, de alguma forma e em alguma medida, participamos deles, nem que seja apenas como meros receptores inocentes. Eles nos invadem por todos os meios e nos atingem de um jeito ou de outro. O máximo que podemos fazer a respeito é pedir a Deus que nos defenda e proteja contra ambos. E haja reza.