Quando apareceram onze esqueletos, infantis na maioria, em pequena caverna da Serra da Raposa, a palavra de León Clerot foi a primeira a ser requisitada. Era o homem do museu das Trincheiras, cheio de queixas do governo de José Américo, a quem acusava de não lhe dar apoio. Fui destacado por Octacílio de Queiroz, de A União, para escalar o penhasco onde já começava, mesmo inacessível, uma espécie de romaria. “Osso não tem idade, mas isso ou sobrou do cólera ou da guerra de tribos” – alvitrou o coronel Elias Fernandes, delegado de Campina, chefe da expedição a que fui me incorporar antes da chegada do antropólogo. Foi minha única reportagem de repercussão fora da Paraíba, reescrita pelo O Cruzeiro, sem menção ao autor e à fonte originais.
Voltei à Serra, dessa vez com o dr. Clerot. Eu e Linduarte, que era repórter com queda para achados como o Talhado de Santa Luzia ou de temas intocáveis como “Capim, o porto fantasma de Epitácio”, este último selecionado entre as melhores reportagens de 1960, editada em plaquete de A União. Estão lá Dorgival sobre a epopeia da construção do Orós do Ceará, Malaquias Batista sobre a mortalidade infantil em “A Cidade Necrópole”, Jório Machado com a reserva de índios potiguares por pouco ainda não dizimada; Severino Ramos estranhando a falta d’água numa cidade rica de mananciais como João Pessoa, e Firmo Justino de Oliveira num relato comovente de quem entrara no casebre geral da periferia da cidade.
Mas voltando à Serra da Raposa, vista de longe por quem passa para o Sertão, onde conheci Zé Elias Borges, que surgiu não sei de onde para conhecer o velho Clerot. Por estranho que pareça, é lembrança que me acode agora diante de entrevista na tevê com a gente da periferia paulistana a sair atrás de cavaco, restos de tábua e papelão para a lenha dos fogões improvisados que a alta do gás trouxe de volta. O fogão das brenhas remotas da Serra da Raposa, as trempes de pedra reconstituídas ao pé dos vitrais mais exuberantes do nosso capitalismo.
“Você é cariri, escritozinho” – classificou-me Zé Elias, após ter lido crônica ingênua em que eu ainda me surpreendia, na era espacial, com a invenção da caixa de fósforo. E me enquadrava entre os índios Bultrins por conta do meu estado de ingênua surpresa diante das caixinhas do fantástico armazenamento do mundo, a do celular. Classificava-me pela mesma antropologia física aplicada aos cariris e a mesma tendência de se encantar com os espelhinhos do colonizador em troca das nossas riquezas.
E devo ser, certamente, pois senti qualquer coisa de reencontro ao ver a tribo que o capitalismo vem aumentando em busca de lenha para ferver a boia generosa distribuída, liberalmente, sob os focos mundiais da televisão. A panela fervendo na brasa fofa do graveto, do cavaco, do lixo como se a carta de Getúlio voltasse a seu tempo: “Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras...”
Hoje, 67 anos depois, a Petrobras ainda não é nossa. Não é ela que dita o preço. O Velho potencializou, sim, ela se tornou mundialmente rica, mas sem condições de evitar o fogo de trempe e de cavaco de uma torcida que para ficar alegre basta um gol do Flamengo. Trempe comum a 14 milhões de miseráveis nativos pelas contas do IBGE.