'Alô, aqui é da UTI do Hospital Santa Isabel. Estamos ligando para informar que a paciente Carmen Coeli Gouveia Romero acabou de falecer'.
Não houve surpresa nossa, pois fazia 7 dias que a visitávamos na UTI, inconsciente, respirando por aparelhos, e, naquele estado, a notícia era a melhor possível para quem ama de verdade.
Não houve surpresa nossa, pois fazia 7 dias que a visitávamos na UTI, inconsciente, respirando por aparelhos, e, naquele estado, a notícia era a melhor possível para quem ama de verdade.
Com apenas 55 anos, vítima de uma meningite contraposta a possível encefalite, partia nossa mãe, sem traumas de sofrimento físico, deixando órfã a “tristíssima trindade”, expressão do amado pai para se referir a mim, ele e meu irmão.
Abraçados em lágrimas, decidimos que o velório seria em casa. Após escolher um de seus vestidos favoritos, fomos buscar seu corpo no hospital. Ao chegar, papai e meu irmão, Carlos, ficaram no carro e eu me dirigi ao necrotério. Foi impactante vê-la deitada na pedra inteiramente embrulhada em lençóis. Um pacote, e ninguém mais. Só eu e ela. Eu e a morte.
Comecei a desembrulhá-la, descobrindo-a, ternamente, pouco a pouco e, ao ver parte de seus seios, supus que ela estava toda despida. Penso que foi a cena mais forte de toda a minha vida, quando seu braço despencou à medida que eu desvendava a mais lancinante das realidades.
Confuso, indeciso, olhei ao redor e desejei ajuda. Surpreendentemente apareceu uma senhora com a filha. Logo perceberam minha dificuldade e lhes pedi que a vestissem, enquanto aguardei lá fora, onde já esperava o carro da funerária, que nós seguimos de volta para casa, em silencioso e pequeno cortejo.
Foi só chegar que ela se tornou novamente linda. O resto foi com música, da forma como costumava pedir ao ouvir o adágio do 2º concerto de Rachmaninoff: “quando eu morrer, coloquem essa música”… Ainda hoje escutamos dos amigos: “o velório mais bonito que eu já vi”. Rachmaninoff, Albinoni, Liszt, Chopin, recompunham o familiar universo que deu aconchego à pianista serenamente adormecida na sala.
E como estava linda! Acostumado a vê-la se maquiar diariamente antes de ir para o trabalho, não foi difícil cobri-la de carinho com seu batom, base, rímel, rouge, pó, delineador, já deitada no meio de flores brancas, com uma rosa vermelha ao lado do rosto. Quando terminei – não sei como – quase dizia como Michelângelo: “Fala, Carmen!”.
Por isso, ainda hoje ela me fala...