É difícil um instrumentista se destacar na música popular: a concorrência desleal com centenas de ótimos e excelentes cantores e cantoras ...

Miles Davis, um visionário

musica jazz trompete instrumental
É difícil um instrumentista se destacar na música popular: a concorrência desleal com centenas de ótimos e excelentes cantores e cantoras é algo que beira o absurdo. O instrumentista, miseravelmente, não canta, ou não sabe cantar. Mas, é preciso vender todo tipo de música – inclusive a instrumental, que a massa ignara detesta, ou nem sabe que existe, ou, pior, nem sabe que é música. Criam-se, então, categorias à parte para instrumentistas. Não para Miles Davis.

Muito além de tudo e de todos, ele era uma categoria só, ele era inclassificável. Revolucionou quase todos os estilos musicais que abraçou. Em projeção, talvez tenha sido o maior instrumentista do século XX. Gênio absoluto, dispensa apresentações. Já soa batido dizer que o som de seu trompete é eterno e possui uma assinatura própria. Talvez tenha sido o músico que melhor encarnou o charme e a sofisticação do jazz moderno.

Miles sempre foi o ponto fora da curva: quando mais se esperava “mais do mesmo” dele, ainda que para o júbilo de seus fãs e devotos empedernidos, ele misteriosamente saía de cena, voltando depois com uma sonoridade completamente nova e vanguardista. Miles sempre foi o cara que enxergava mais adiante.

Na década de 40, estudou na famigerada Julliard School of Music, de Nova York, ao lado de outro gênio, Charlie Parker, com quem também chegou a gravar. Em 1948, formou o noneto que, com arranjos de Gil Evans, Gerry Mulligan, John Lewis e John Carisi, marcou historicamente o nascimento do estilo musical denominado cool jazz – com o disco Birth of the Cool, verdadeira obra-prima. Em 1955, formou o quinteto mais célebre da história do jazz, com o mito John Coltrane (sax tenor), Red Garland (piano), Paul Chambers (baixo) e Philly Joe Jones (bateria). De 1957 a 1959, o grupo foi “reforçado” por Julian “Cannonball” Adderley (sax alto).


Mestre no trompete (aberto ou com surdina), a qualidade do seu som era única e beirava a perfeição. Suas linhas melódicas são robustas, tensas, sinuosas, dramáticas, oníricas. Ele é o exemplo inconteste de que a grande música instrumental dispensa o canto: seu próprio instrumento fala por si e não há carência de voz humana. O trompete de Miles é a voz sublime do êxtase.

Como um mutante ou camaleão, a cada disco impunha um novo sentido à música. Continuou tocando em sua banda com músicos extraordinários como Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ron Carter, Chick Corea, Dave Holland, John McLaughlin, Keith Jarret, entre outros. Navegou pelo bebop, cool, hard bop, free jazz, jazz modal, jazz-rock, jazz-funk, jazz-fusion e até uma música pop mais sofisticada, já em seus últimos anos, em que o jazz era mais tempero do que essência, gravando, inclusive, por incrível que pareça, temas de Michael Jackson e Cyndi Lauper, o que atesta sua ausência de preconceitos ou ortodoxias musicais. Com efeito, o que mais lhe atraía eram as boas melodias e os fraseados que poderia construir com elas em sua música, constituída também por um repertório harmônico e rítmico fantástico.


Entre tantos temas soberbos, extraídos de discos visionários como Miles Ahead, Sketches of Spain, Kind of Blue, E.S.P. ou Filles de Kilimanjaro, há um que, a meu ver, sintetiza a sua sofisticação: a versão de Around Midnight (composta por B. Haninghen, C. Williams e um outro gênio, só que do piano – Thelonious Monk, em duas versões abaixo – a de estúdio e outra ao vivo), na qual a banda é composta apenas por um tal John Coltrane no saxofone tenor, William “Red” Garland no piano, Paul Chambers no baixo e Philly Joe Jones na bateria (não confundi-lo com outro monstro das baquetas – Jo Jones). Quando ouço músicas como esta, fico imaginando por que certos sons primários produzidos por seres humanos, no terreno da canção popular, ainda são chamados de música...


Em 1972, Davis sofre um acidente de carro, ocasião em que surgem outras complicações em sua vida pessoal decorrentes de antigos problemas com drogas e álcool, razão pela qual sai de cena até 1980 (seu maior período de hibernação). Volta no ano seguinte, com bastante estardalhaço da gravadora Columbia, com o álbum The Man with Horn.

Miles pertenceu a uma linhagem de trompetistas tradicionais e fenomenais do jazz, que começa com Buddy Bolden, passando por Joe “King” Oliver, Louis Armstrong e o incrível e sincopado Dizzy Gillespie. Ao contrário desses músicos, nunca foi considerado um virtuose de alto nível de habilidade técnica. Miles, no entanto, não se importava com isso: ele almejava moldar estilos inteiros, queria construir a “nova música”. E, de fato, conseguiu tal façanha.
Dessa forma, ser influente ou obter distinção em seu instrumento era só um mero detalhe.

Certa feita, assistindo a um show da turnê Banco do Brasil de música instrumental em João Pessoa, no teatro de arena do Espaço Cultural José Lins do Rego, ouvi o bruxo brasileiro Hermeto Pascoal, entre uma música e outra, na hora de interagir com o público, dizer, mais ou menos com estas palavras: “já viajei o mundo inteiro tocando minha música e posso dizer que toco qualquer instrumento que apareça em minha frente, tiro música de tudo que vocês imaginarem, até de uma chaleira ou pedaços de pau, se assim quiserem, mas, no dia em que um camarada chamado Miles Davis falou que eu tinha sido um dos maiores músicos que tocaram com ele, perdi meu chão, a partir dali eu já sabia que nada mais importava, eu podia morrer feliz.”

Para tentar concluir de forma memorável este artigo (não é fácil falar sobre a música poderosa de Miles), o resenhista ficou procurando o dia em que Miles morreu… Ele morreu?! Assim… de verdade?! No caso dele, a morte física foi apenas um mero detalhe.

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  1. Muito bom, Thiago. Me lembrou os belos textos de Cortázar, também deslumbrado com o jazz. Jamais me esquecerei de que, ao ver Armstrong em Paris, ele disse que "De la trompeta de Louis la música sale como las cintas habladas de las bocas de los santos primitivos". Conta-se que Lampião, quando atravessava o São Francisco, à noite, a caminho da Grota do Angico, onde seria morto, atracou uma barca com um grupo de jazz. Botei isso em versos que estão em algum de meus romances. Há um momento em que Virgulino paga para que a banda toque... e descrevo esse efeito... mágico percebido por Cortázar, no Rei do Cangaço:
    Brilharam em Virgulino
    as libras de sua testeira.
    Brilhou um Pedro II
    e os Deus-te-Guie em fileira.
    A exposição dos anéis
    de vários contos de réis
    reluz na luz derradeira.

    Ele vê as montanhas cobertas
    como de... colcha e lençóis...,
    a terra transfigurada,
    o rio com outra voz.
    Feito se entrasse num sonho,
    fecha seus olhos, suando,
    e todos se sentem... mais sós.

    E é então que ele diz: - Estou morto,
    não sirvo mais pra esta vida.
    É um dessufoco e sufoco
    de origem desconhecida.
    Sou pé-de-pau que não presta,
    que o meio da fuloresta...
    torce, retorce, liquida.
    Seu texto mostra, igualmente, sua paixão pela música de Miles Davis. Com enorme prova de sensibilidade.

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