De nascimento prematuro, só tardiamente estreou em livro. Tal paradoxo seria suficiente para ilustrar a cronologia da vida e da obra de Mário Quintana, fronteiriço de Alegrete, Rio Grande do Sul, onde nasceu no dia 30 de julho de 1906.
Na verdade, a cronologia desse poeta gaúcho se perfaz sob a égide da solidão de ter nascido antes da maioria dos seres gerados à época em que ele o foi; de lançar-se a público aos 34 anos com um solitário livro de ressonâncias simbolistas quando se vivia a quase unanimidade do modernismo e, finalmente, pela condição de fronteiriço não por ser natural de Alegrete, mas por extrapolar os estreitos limites da geografia para conceber um mundo de magias e de sortilégios.
Curiosamente, a maioria da crítica parece ter corroborado o estigma da solidão que medeia a vida e a obra de Mário Quintana: isolou-o quase compulsoriamente no contexto da lírica nacional a partir mesmo de A rua dos cataventos, seu livro de estréia. Mas não como um caso à parte, como um poeta atípico, como “o fenômeno Quintana”1, porém lançando sobre ele ora a pecha de simples retardatário do simbolismo, ora a de mero epígono de António Nobre.
Com efeito, até Álvaro Lins, no geral tão criterioso nas suas assertivas, além de situá-lo “dentro dos processos da velha poética”2, na medida em que “os seus versos mostram-no como um indiferente ao que se passou, entre nós, de 1922 para cá”3, faz menção à presença ostensiva de António Nobre nos sonetos de A rua dos cataventos. A tal ponto que, ainda para Álvaro Lins, a poesia de Quintana “mais comoveria se não fosse tão generalizada (...)”4 a influência do simbolista português.
Contra essas considerações no mínimo equivocadas, quem se insurgiu foi o crítico e ficcionista Fausto Cunha, segundo o qual “as relações de Quintana com o modernismo parecem óbvias no texto da Rua”5, ao passo que “A presença de António Nobre era deliberada, buscada (afinal um poeta tem o direito de render seu tributo), mas é na maioria dos casos uma presença alusiva ou, antes, remissiva. (...) De certa maneira, é até um recurso de que o poeta se vale para ganhar e revelar maior liberdade estrutural”6.
A par de um tributo prestado ao poeta português, tratava-se de um procedimento dialógico, pois, de conformidade com o próprio Quintana, “(...) o que chamam de influência poética é apenas confluência”7. E ninguém mais do que ele possuiu um temperamento incapaz de “alhear-se (...) da sua interioridade a fim de se outrar...”8. Ou, o que dá no mesmo, incapaz de submeter-se passivamente às influências, de permitir que as fontes das quais se abeberara saciassem a sua sede. Tanto que, afluente dos mais caudalosos da poesia nacional, nem por isso o Movimento de 22 desviou o rumo de sua lírica. Antes, foi ele quem o desafiou com a publicação, em 1940, de um livro de sonetos, gênero poético praticamente abolido pelos modernistas e rejeitado pela maioria dos críticos da época, sobretudo por aqueles que, a exemplo de Álvaro Lins, haviam consolidado a sua profissão de fé ao ideário estético de 22:
Álvaro Lins
“Já tendo declarado minha predileção pela poesia moderna, sinto-me muito bem com a oportunidade que me oferece o Sr. Mário Quintana (‘A rua dos cataventos’, Porto Alegre, 1940), de poder louvar um poeta da melhor espécie dentro dos processos da velha poética”.9
Álvaro Lins parecia insinuar que sabia fazer concessões diante de “um poeta da melhor espécie”10, mesmo que tal poeta incorresse no equívoco de compor sonetos, “todos bem rimados, bem metrificados, bem estruturados”11. Mesmo que tivesse abdicado de qualquer tipo de “liberdade com esta forma secular de catorze versos”12.
Quem mais uma vez assumiu a defesa do poeta gaúcho foi Fausto Cunha, desta feita para refutar a observação de Álvaro Lins sobre os sonetos de A rua dos cataventos: “Bem rimados e bem estruturados são todos, não há dúvida, mas a metrificação de Quintana está longe de ser a tradicional entre nós (...)”13.
E para melhor argumentar, transcreve a primeira estrofe do Soneto XIV:
“Dentro da noite alguém cantou.
Abri minhas pupilas assustadas
De ave noturna...E as minhas mãos, velas paradas,
Não sei que frêmito as agitou!”14.
E conclui com referência à performance de Quintana na fatura do soneto em questão:
Fausto Cunha
“Eis aí uma admirável combinação de versos de 8, 10, 12 e um quarto que por simetria podemos ler como de 8 sílabas, embora possa alongar-se por 9 e mesmo 10 sílabas. Observem-se o enjambement e a cadência do 3o verso. O terceto final desse mesmo soneto combina versos de 12, 7 e 8 sílabas com o primeiro cabendo na categoria de versos inumeráveis, de que fala Manuel Bandeira (...)”15.
Ao que tudo indica, a leitura de Álvaro Lins fora prejudicada pelo ranço preconceituoso com relação ao soneto, do contrário não lhe teria passado despercebido o quanto Mário Quintana se assenhoreia de um gênero que tem tudo para converter o poeta num servil artesão submetido às torturas e aos caprichos da forma.
Já Sérgio Milliet, crítico no natural generoso e indulgente com os poetas, não o foi com o autor de A rua dos cataventos, tanto que chegou a preconizar um futuro pouco alvissareiro para os 35 sonetos reunidos no livro de estréia de Quintana: quando muito, alguns deles seriam objeto da reverência do público, jamais da crítica mais requintada. Pois a esta, na qual certamente Milliet se incluía, restava não se deixar seduzir pelo canto de sereia do discurso quintaniano, que às vezes agradava até mesmo aos ouvidos mais exigentes, desde que não comportasse pretensões excessivas16.
Vazado em meios-tons, o artigo de Sérgio Milliet parecia vaticinar a permanência de Quintana apenas nas antologias consumidas pelo leitor médio, cujo gosto sempre preservou a tradição literária em todos os tempos e lugares.
Por aí já se vê o quanto o lírico de Alegrete estava a reivindicar um estudo crítico que mantivesse uma íntima relação de consentaneidade com a sua poesia. Ou seja, uma exegese que não fosse simples decorrência ou epifenômeno do ideário estético desse ou daquele período literário.
Até determinado ponto produtos do meio e das circunstâncias do modernismo, Sérgio Milliet e Álvaro Lins certamente viam no soneto um gênero desde há muito posto em disponibilidade pelo movimento de 22, sobretudo os de Quintana, cujas inovações não encobriam de todo os traços neo-simbolistas que impregnavam a maioria deles.
Contudo, Mário Quintana não foi indiferente ao modernismo e tampouco um “(...) gazeador de todas as escolas17,” pois mesmo não se matriculando em nenhuma delas, soube freqüentá-las sem sacrificar a alma boêmia das ruas, as quais ocupou ora de corpo inteiro, ora espiando-as através das muitas janelas que abriu nos seus poemas. Janelas escancaradas para a vida e semi-abertas para o aspecto livresco da existência humana.
Uma vez que estreou em 1940, cronologicamente poderia ser considerado um integrante da chamada Geração de 45. Mas não o foi no essencial, ou seja: na linguagem, cujo coloquialismo o situou numa região antípoda ao tom solene e austero da retórica cultuada por essa geração do pós-guerra. E também na escolha dos temas, que embora incidisse sobre as coisinhas miúdas, sobre as migalhas de Deus, teve a seu favor a linguagem, cuja tarefa consistiu em extrair do aparente cascalho um inexaurível filão poético:
“Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando poesia em tudo, pois nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aí... Quanto filhotinho de estrela atirado no lixo!”18
No tomo V da História da literatura brasileira, de Massaud Moisés, pode-se acompanhar, passo a passo, o quanto se torna difícil situar e avaliar a obra de Quintana no contexto da lírica nacional. Daí por que, após marchas e contramarchas, avanços e recuos, Massaud Moisés concluir: “Ver nessa poesia reação ou progresso dependerá de nos situarmos em coordenadas ideológicas (políticas ou religiosas) ou estritamente literárias (se é possível)”19.
Massaud, porém, parece ter uma opinião firmada a propósito da obra do poeta gaúcho:
Massaud Moisés
“Em qualquer hipótese, é importante reconhecer em Mário Quintana um dos líricos maiores da modernidade, dono de uma fluência como que encontrada por um movimento de espontânea adesão ao poético das coisas, dos seres, do tempo, do vento, do mar, etc., por parte de quem vive desde sempre ‘entre os Loucos, os Mortos e as Crianças’ (soneto V)”20.
No entanto, até a 9ª edição de A literatura brasileira através dos textos, lançada em 1981, Massaud Moisés havia omitido Mário Quintana dentre os nomes dignos de figurar num “painel altamente representativo da diversidade, riqueza e valia das manifestações do gênio literário no Brasil”21. E tal procedimento, como não poderia deixar de ser, pode propiciar pelo menos duas indagações, a primeira delas formulada nos seguintes termos: sob que coordenadas ideológicas ou literárias se situou o professor paulista para omitir, até quase recentemente, o poeta Mário Quintana dentre os escolhidos para integrar o volume A literatura brasileira através dos textos?
Já a segunda questão, um desdobramento da primeira, pode ser assim expressa: que razões levaram Massaud Moisés a incluí-lo no tópico “Tendências contemporâneas”, desse mesmo volume?
No livro A criação literária, distinguindo o gênero lírico do épico, Massaud Moisés emite juízos de valor sobre cada um deles de modo a estabelecer uma nítida vantagem do segundo com relação ao primeiro. Para ele, a poesia lírica estaria subordinada à fase da adolescência, da imaturidade emocional, enquanto a épica assinalaria o momento “em que o poeta alcança a maturidade interior”22. E mais: o gênero épico “pode ser considerado aquele para o qual se orienta todo grande poeta, não importa a época e o movimento literário a que pertença. Medieval, clássico, romântico, simbolista ou moderno, todo poeta ‘superior’ tende para o épico”23.
Estas considerações a propósito dos gêneros lírico e épico já explicitam, por si mesmas, o porquê da resistência de Massaud Moisés em considerar, pelo menos num primeiro momento, Mário Quintana como um dos patrimônios da poesia brasileira.
Por outro lado, não existe gênero maior ou menor, mas poetas cujo desempenho, quer seja na esfera do épico, quer seja na do lírico, lhes confere ou não o estatuto de poetas maiores. E Quintana, até prova em contrário, foi um lírico superior, pois, apesar das idiossincrasias de Massaud Moisés com relação à poesia lírica, não houve alternativa para ele senão incluí-lo no volume A literatura brasileira através dos textos.
E por que no tópico dedicado às “Tendências contemporâneas”? Talvez pela dificuldade de enquadrá-lo em um só movimento, tantas são as vertentes poéticas que deságuam na sua obra. A ponto de, segundo Massaud Moisés, nela confluírem ora as “linhas de força simbolistas, pelo conteúdo”, ora “as linhas de força parnasianas, pelo culto do soneto e outras formas fixas”24. Isso sem falar dos traços surrealistas que compõem o “retrato desse romântico tardio, ou moderno que não virou as costas à tradição nem se fez de surdo às vozes interiores (...)”25.
Daí o tópico “Tendências contemporâneas” mostrar-se consentâneo ao modus operandi de quem, “Por temperamento, por formação, ou por escolha, colocou-se à margem do Modernismo, cultivando uma poesia sem data, atemporal, que ‘não cabia em nenhuma receita ou formulário do momento’ ou, se se preferir, anterior às práticas modernistas de 22”26.
A circunstância de acertadamente julgar a poesia de Mário Quintana atemporal, infensa a modismos ou breviários estéticos, não eximiu Massaud Moisés de incorrer no mesmo equívoco de Álvaro Lins quando a colocou à margem do modernismo. Pois entre não se submeter passivamente ao conteúdo programático de 22 e pôr-se à margem deste movimento vai uma distância muito grande. Sob esse aspecto, alguns dos sonetos de A rua dos cataventos já são suficientes para denotar o quanto o poeta incorporou do modernismo uma linguagem de matiz coloquial a par de uma temática regida pelo cotidiano.
Mas se Massaud Moisés reconheceu o caráter plurifacetado e dinâmico da obra de Mário Quintana, ainda hoje há quem utilize A rua dos cataventos como um ponto de referência fixo de sua poesia. É o caso de Alfredo Bosi, segundo o qual Quintana “(...) é um poeta que encontrou fórmulas felizes de humor sem sair do clima neo-simbolista que condicionara a sua formação”27. Aqui, porém, o simples emprego do vocábulo fórmulas parece manietar Quintana à ditadura das fôrmas em contraposição à maleabilidade das formas. Ou, em última análise, insinuar que ele teria descoberto uma fórmula capaz de produzir poemas em série, todos eles monocórdicos porque contaminados por uma espécie de compulsão tautológica. O que não é bem assim, pois até mesmo o fato de adotar o poema em prosa, como ele o faz a partir de Sapato florido (1948), revela o propósito de despir-se das camisas-de-força do soneto e de outras formas fixas para ir à cata de novas aventuras poéticas. Tanto que, para Suzanne Bernard, o poema em prosa origina-se de “uma revolta contra todas as tiranias formais que impedem o poeta de criar uma linguagem individual, obrigando-o a verter em moldes prontos a matéria dúctil de suas frases”28.
Sobre Quintana talvez fosse mais pertinente afirmar-se: saiu da atmosfera neo-simbolista que condicionara a sua formação por descobrir fórmulas felizes de humor. Se é que as descobriu, pois nele, antes de ser procurado, antes de ser uma estratégia intelectual, como o foi em Manuel Bandeira, o humor é intrínseco, congênito, mas nem por isso menos eficaz no sentido de evitar os excessos de um temperamento muito mais subordinado ao sentimento do que à razão. Daí o seu humor visceralmente orgânico contrapor-se ao ritual hierático da corrente simbolista, não obstante a sua formação livresca o tivesse induzido a assimilar alguns postulados do repertório poético desse movimento. Nenhum, contudo, que o despersonalizasse a ponto de recalcar os ditames do “eu profundo”. Aliás, ninguém mais autorizado do que Augusto Meyer para ratificar o quanto a vida e a obra de Mário Quintana mantêm um estreito vínculo de relação e de interdependência:
“Não sei de outro poeta em que o poema seja uma consubstanciação tão perfeita entre viver e cantar, entre sofrer vivendo e sofrer cantando”29.
No volume VII da História da inteligência brasileira, Wilson Martins faz menção à coletânea Sentimento do mundo (1940), de Carlos Drummond de Andrade, lançada no mesmo ano de A rua dos cataventos, para estabelecer um paralelo entre os dois livros: “(...) Marcava-se, mesmo, pelo sentimento, mais que pelo sentimento do mundo, a estréia literária de Mário Quintana (...)”30.A seguir, concluía que a linha de inspiração do poeta gaúcho filiava-se ao “realismo neo-simbolista”31, à melancolia de António Nobre e à “estética das reticências”32, de Álvaro Moreyra. E, na esteira de Sérgio Milliet, arrematava: “O público, entretanto, recebendo de boa graça esse retorno ao lirismo pré-modernista, parecia reencontrar-se ou reconhecer-se em sonetos como este...”33 E transcrevia o soneto VI de A rua dos cataventos.
As poucas linhas escritas pelo autor de História da inteligência brasileira sobre Quintana se constituem numa espécie de pot-pourri de tudo o que já fora dito a respeito do poeta desde Álvaro Lins, passando por Sérgio Milliet, até Alfredo Bosi e outros.
Há um trecho de Wilson Martins, no entanto, que faz por merecer algumas considerações. É quando, escrevendo que a estréia de Quintana “Marcava-se, mesmo, pelo sentimento, mais que pelo sentimento do mundo”34, parece sugerir o seguinte: o sentimento de Quintana abriga apenas uma rua, ao passo que o de Drummond comporta a vastidão do mundo.
Ora, mas se o sentimento de Drummond comporta o mundo, o de Quintana extrapola a rua, rompe os estreitos limites do particular e alcança o universal, o que quer dizer que a distinção entre poeta épico e poeta lírico, entre poeta maior e poeta menor, sobretudo quando aplicada para mensurar o nível qualitativo dessa ou daquela obra, apenas põe a nu o ranço preconceituoso de quem a utiliza. Que o digam os “metafísicos” ingleses, para os quais a formação requintadamente erudita de Sir Samuel Johnson torceu o nariz, ele próprio responsável pelo rótulo “poesia metafísica”, que empregou simplesmente para debicar dos temas, segundo ele pouco sublimes, para não dizer escatológicos, explorados por John Donne, Georg Herbert e outros.
Ainda a propósito de poeta menor e da distinção entre este e poeta maior, vale a pena a transcrição das seguintes palavras de Ivan Junqueira:
Ivan Junqueira
“O conceito (...) torna-se às vezes até mesmo contraditório, como ocorreria, por exemplo, se submetêssemos a cotejo um poeta ‘maior’ cuja obra fosse apenas aceitável do ponto de vista de suas virtudes literárias e um poeta ‘menor’ que, pela excelência das mesmas tivesse de ser considerado como artista de altos méritos. Sucede neste caso, como é óbvio, que o poeta dito ‘menor’ é maior do que aquele a quem normativamente se teria na conta de ‘maior’”35.
Se a dissolução dos gêneros literários é um recurso desde há muito disseminado entre poetas e escritores, alguns críticos ainda assumem uma postura clássica quando os delimita em compartimentos estanques. Ou seja, procedem como se os gêneros literários fossem classes sociais cujo isolamento e cujas atribuições definissem a supremacia de umas sobre as outras.
Nenhuma poesia deve ser tomada ao pé da letra, especialmente a de Quintana. Fosse assim, a se julgar pelo soneto V de A rua dos cataventos, ele seria absentista no que diz respeito às questões sociais. Contudo, o que Wilson Martins parece ter confundido com um lirismo ególatra e mesquinho, aos poucos vai ampliando o seu raio de ação para celebrar um sentimento de solidariedade quase cósmico com os excluídos de todos os gêneros, desde os Loucos, passando pelas Crianças, até os Mortos. Daí o “vago País de Trebizonda” existir como um prolongamento ou como um sucedâneo do planeta Terra, no que se contrapõe à bandeiriana Pasárgada, espaço particular e utópico onde o poeta procurava, estoicamente, se reajustar ao “mundo dos sãos”36.
O Código civil brasileiro considera os ausentes, as crianças e os loucos “(...) absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil”37. E são justamente estes os habitantes do “vago País da Trebizonda”, todos sem voz, sem vez e impedidos de exercer a cidadania, a não ser que o poeta o faça, ele próprio um marginalizado, embora possua a faculdade de, entre os Loucos, os Mortos e as Crianças, entoar o canto com o qual acalenta o desejo e a esperança de todos indistintamente.
Na verdade, é bem de Quintana o hábito de discorrer sobre um sentimento todo seu, a respeito de um “mal secreto”38 “Que não é bem o mal de toda a gente”39, para erigir o particular à condição de universal:
“Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda a gente,
Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...
E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...
Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!...
Segundo Tania Franco Carvalhal, “(...) o social, em Quintana, não está designado pelo poema: é o poema”40. E mais adiante: “Embora o poeta manifeste o desejo de não doutrinar, ele expõe as questões fundamentais. Seu poema, no próprio movimento interno, constrói a temática do social, que às vezes ele toma sob o ângulo mais intimista e outras sob o mais geral, e se inscreve na História”41.
Se no soneto V de A rua dos cataventos o social é tematizado a partir de uma visão intimista do mundo, em “Nabucodonosor” — inserto em Caderno H — Quintana mais uma vez opta pelos excluídos, desta feita explorando o estrato ótico, a extensão quase quilométrica do nome do rei da Babilônia. Mas nem por isso ele deixa de submeter a sensação visual e fônica oferecida pelo nome Nabucodonosor ao crivo do “eu profundo”, procedimento que o inscreve entre os poetas líricos por excelência. Sobretudo entre aqueles que interiorizam um referente externo com o propósito de transfigurá-lo através da linguagem e do sentimento. Ou seja, porta-voz dos súditos do rei da Babilônia, cumpre a Quintana demolir o porte catedralesco, litúrgico e régio do nome Nabucodonosor para, só então, enxergá-lo nu, despido das muitas letras perfiladas e contritas que lembravam um cortejo religioso. Tal processo, que para alguns estudiosos poderia suscitar o emprego da teoria da carnavalização, de Bakhtin, finda por destronar o nome Nabucodonosor para abreviá-lo ou reduzi-lo a um simples e nada majestático apelido: “Bubu”. Eis o texto de Quintana: “O nome de Nabucodonosor é belo como um cotejo religioso. O triste é que os seus súditos, para abreviar, chamavam-no simplesmente de Bubu”.
Não obstante explore os estratos ótico e fônico do nome do rei da Babilônia, Quintana parece adotar “a preguiça como método de trabalho”42, uma vez que não move sequer uma palha (ou uma letra?) do nome Nabucodonosor para compará-lo iconicamente a um cortejo religioso. Isto é, não deixa os vestígios de sua passagem, no que se distancia das performances geralmente ruidosas e pirotécnicas dos vanguardistas mais ortodoxos.
Mas se o nome Nabucodonosor parece feito sob encomenda para a concepção do texto; ou uma mera dádiva dos deuses da poesia; ou ainda fruto do menor esforço, de uma coisa pode-se ficar certo: ele não obteve o texto Nabucodonosor “em lance santo ou raro, tiro nas lebres de vidro/ do invisível”43.
Já na primeira estrofe do soneto XV, de A rua dos cataventos, Quintana não mantém o vocábulo minuciosamente íntegro e incólume como o fizera com o nome Nabucodonosor para evocar um cortejo religioso. Aqui, separadas por hífens, as sílabas de mi-nu-ci-o-sa-men-te reproduzem o desenho do fumo subindo ao céu e apontam para o significado da própria palavra, pois, quem desce a minúcias, parece tecer, bordar, tantos são os detalhes e as filigranas em que se enreda. Em suma, é o poeta atento à representação iconográfica do referente externo e ao sentido da palavra, este também expresso visualmente:
“O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado”.
Até mesmo no livro de estréia, Quintana está longe de se mostrar um poeta apenas intuitivo. Na verdade, raros os que, a exemplo do poeta de Alegrete, souberam mensurar a distância entre a emoção que se instala à flor da pele e a folha de papel. Distância que venceu através da linguagem, uma vez que só assim disciplinaria os arroubos de um temperamento regido muito mais pelo sentimento do que pela razão.