Publiquei, recentemente, um texto crítico sobre um projeto de lei apresentado por uma deputada federal, cujo propósito é retirar da celebração do casamento civil a frase final “Eu vos declaro marido e mulher”, sugerindo alterações que neutralizariam essa conclusão.
Wylka, uma ex-aluna, de uma forma educada e gentil, a partir da leitura do meu texto, me fez algumas questões sobre a língua, dentre elas, a sua apropriação pelo patriarcalismo. Como a sua intenção era realmente tirar as dúvidas, eu escrevi uma resposta mais longa e, de comum acordo com Wylka, resolvi torná-la pública. Segue a resposta:
Wylka,
Estas questões são muito complexas e dariam, na realidade um tratado. Vamos ver se consigo responder o essencial.
Em primeiro lugar, acho que deve ter havido um engano ou de minha parte ou da sua, com relação à língua ser imutável. A língua é um sistema, como você sabe, que se realiza na linguagem. O sistema abriga muita coisa, que ali permanece, mas só se manifesta no uso. De tal forma que nem tudo o que ali se encontra, se utiliza, pois fica em um estado de possibilidade, podendo ou não um dia ser recuperado pelo uso. Sempre digo que o uso é o senhor da língua, ele é quem determina o quê e o como. Mas não estou sendo original. Horácio, o poeta latino do século I a.C., já dizia isto na sua Epístola aos Pisões, conhecida como Arte poética.
Dentro da língua há uma parte que pertence à sua gramática interna, à sua estrutura, formada pelos morfemas gramaticais, e outra pelos morfemas lexicais. No que diz respeito à sua estrutura, a língua pouco muda e, quando muda, o faz de modo muito lento. Podemos dizer que é como o esqueleto que vai se adaptando às mudanças do corpo, mas o faz lentamente, não de modo abrupto. Já a parte lexical recebe mudanças diárias, frequentes e sistemáticas. Dito de outro modo, podemos afirmar que não se cria uma nova preposição há séculos – literalmente, há séculos! –, mas substantivos, adjetivos e verbos são criados diariamente, sem cessar, acompanhando a evolução das profissões e dos costumes, por exemplo.
Com o advento da informática, criou-se o verbo deletar, para dizer “apagar”. Pois bem, “deletar” não é nenhuma novidade, nem mesmo é inglês. Está no sistema das línguas neolatinas ou novilatinas, como queiram, pois é formado pelo supino do verbo “delĕo, delēre”, da segunda conjugação, com o sentido de “apagar”, “destruir”. Como se sabe, pela estrutura do latim, o supino serve a criar verbos frequentativos. Do supino “deletum”, o sistema prevê a formação de *deleto, *deletāre (formas teóricas permitidas pela lógica do sistema), de onde surgiria deletar, no português. Observe que, mesmo sendo uma criação para o léxico, nada se faz aleatória ou arbitrariamente. Há uma lógica interna guiando a nova formação de palavras. Do mesmo modo que de cano, canĕre, cantar, de cujo supino cantum formou-se o verbo frequentativo canto, cantare, resultando em cantar, em português.
O léxico, portanto, está sempre em franco processo de evolução, enquanto a morfologia estrutural é lenta e necessita de mais tempo para se modificar. Mesmo quando a modificação acontece na parte estrutural, permanece um arcabouço que permite o reconhecimento das estruturas antigas da língua. Assim é que o nosso plural se faz com o acréscimo do morfema /-s/, porque proveniente do plural do acusativo latino, caso lexicogênico, cujas palavras masculinas e femininas sempre faziam o plural em /-s/. Podemos citar o caso do plural em /-ão/, para se ver que não existe complicação, nem há exceções, porque o mecanismo, que permite as diferenças entre mão/mãos; pão/pães, e leão/leões, encontra-se no sistema linguístico. Todas estas diferenças foram ditadas não pela aleatoriedade, mas por uma lógica interna da língua:
Os estudos da Linguística Histórica mostram as transformações de uma língua e entre as línguas. Sabe-se, por exemplo, que o indo-europeu é uma língua teórica, porque muitas das línguas atuais, por mais diversas que sejam, mostram semelhanças na morfologia, na fonética e na sintaxe. A palavra “mãe”, por exemplo, apresenta o mesmo radical em 12 línguas muito antigas: sânscrito, avéstico, armênio, grego, albanês, irlandês, latim, velho alemão, islandês, lituano, velho eslavo e tocariano, ainda que elas sejam distintas e distantes geograficamente. Pode-se observar que a forma teórica *mātā, é proveniente do estudo dessas línguas citadas, todas apresentando uma raiz comum para “mãe”.
Da língua histórica, documentada, como o galaico ou galego-português, a partir do século XII, ao português camoniano, há uma depuração notável, tendo em vista que, a partir de Camões, com Os Lusíadas, em 1572, a língua portuguesa se consolidou, ao se separar definitivamente do galego. De Camões para cá, as mudanças estruturais são poucas, havendo mais mudança de léxico, grafia e fonética, ditadas pelo uso, sobretudo quando as barreiras geográficas separam Portugal e Brasil. O mesmo acontece com o inglês da Inglaterra e dos Estados Unidos; o francês da França e do Canadá. Tudo isto ditado pelo uso. Mas são a mesmíssima língua, na sua estrutura.
O chamado grego homérico, que remonta ao século VIII a.C., era cheio de dialetos – ático, jônio, dórico, arcádio, cipriota... – embora, na Ilíada e na Odisseia, predomine o jônio. Já o grego de Platão se firmou com a utilização do ático. O grego do Novo Testamento consolidou-se como coiné, para a bacia do mediterrâneo, com a expansão operada por Alexandre, a partir do século III a.C., o que permitiu que as pessoas pudessem se entender, numa segunda língua comum a todos. Um dos resultados dessa expansão foi a escritura do Evangelho em língua grega, de modo a atingir também os gentios e não apenas os hebreus. Todas estas formas da língua grega estão, contudo, no mesmo sistema. O grego moderno resolveu simplificar o sistema e tomou uma estrutura um pouco diferente, mas em que se pode ver o esqueleto do grego mais antigo. Foram necessários dois mil anos para que isto acontecesse.
Na língua portuguesa, estamos acompanhando, no Brasil, uma mudança que poucos percebem, com a queda do pronome “vós” e do “pretérito mais-que-perfeito simples”. São raríssimos os que os utilizam escrevendo – falando, ninguém! –, embora, sejam ainda de uso corrente em Portugal. É o que aconteceu na língua francesa com o “passé simple”, substituído pelo “passé composé”, ambos traduzindo o nosso pretérito perfeito do indicativo. Mesmo deixando de ser usado, o pronome “vós” e o “pretérito mais-que-perfeito”, no Brasil, tanto quanto o “passé simple”, na França, continuam no sistema da língua e podem, novamente, ser trazidos de volta. Quem vai determinar é o uso.
O que ocorre, normalmente, numa língua, é o sistema mais duro da estrutura se livrar de formas mais complexas, embora elas permaneçam na possibilidade, e buscar uma simplificação. Desconheço que o sistema admita mudanças internas, para torná-lo ainda mais complexo. Por este motivo e por conta da imposição do uso é que duvido muito que “todes”, “menines” e outras formas mais esdrúxulas, como “todxs” ou “tod@s”, sejam adotadas pelo sistema. Há pessoas que vão usá-lo, mas não a maior parte da população, porque não se impõe uso de língua por decreto. Não funciona. O uso é rebelde e não dá a mínima para leis ou decretos externos, o que ajuda a língua a ser conservadora. Se não fosse assim, há muito que a crase, uma inutilidade na língua portuguesa, já teria ido para o lixo. José de Alencar bem que tentou.
Em suma, as línguas mudam, mas não na velocidade apregoada por alguns linguistas ou pelo desejo de algumas pessoas. As mudanças estruturais que, porventura, ocorrerem na língua portuguesa só serão vistas, muitos séculos para a frente.
No que concerne ao emprego da expressão “Eu vos declaro marido e mulher”, digo, Wylka, que não entrarei na questão ideológica, com relação ao feminismo ou ao patriarcado. Respeito a sua visão. Como não vamos estar de acordo, pois temos as nossas convicções, e nem eu quero convencer você e acredito que você também não quer me convencer, gostaria de dizer apenas que o uso é que deu à palavra “marido” um peso opressor, que, estou convencido, não mudaria se, em lugar da expressão “marido e mulher”, fosse utilizado “homem e mulher”, tendo em vista que o uso dado à palavra “homem” – na sua origem, “ser humano” – , também a contaminou de macheza opressora.
A palavra “marido” (μεῖραξ) significava, inicialmente, “moça”; depois, “rapaz” – sentidos que se perderam –, possivelmente para marcar a idade do casamento. O termo está vinculado ao verbo meíromai (μείρομαι) com o sentido de “o que cabe em partilha”. Acredito mesmo que, quando soubermos respeitar uns aos outros, não importará se o termo será “homem”, “marido”, “companheiro” ou “igual”. Mas estamos longe disso e as pessoas, infelizmente, fazem do uso linguístico uma forma de poder pessoal. No entanto, não podemos negar o direito que muitos reivindicam do uso destes termos. Sequestrá-lo, sob o falso argumento da inclusão ou de machismo, seria uma imposição e, portanto, nada democrática ou respeitosa. É o que me cheira, quando vejo projetos de lei neste sentido. O debate, contudo, continua em aberto.
Quanto ao latim, eu poderia dizer que as línguas que dele derivam – português, italiano, espanhol, francês, romeno, catalão, galego, provençal... – não existiriam como tais, se não fosse a sua expansão, e teriam custado a se revelar como línguas históricas. Mesmo as línguas que não são neolatinas, elas se beneficiaram do latim, para poder se formar. O latim se tornou língua comum ou coiné, durante a Idade Média, ajudando que povos eslavos, povos escandinavos e até finlandeses, cuja língua é de um ramo diferente dos escandinavos, além dos húngaros, se entendessem. O inglês tem muito do latim, na sua concisão, no seu vocabulário e na sua compreensão explícita do aspecto verbal, denotando ação continuada ou ação acabada.
A Igreja usava o latim para se fazer entender em todos os lugares que chegava, porque o latim passou a ser a língua comum na Europa. Depois que as línguas nacionais se criaram, derivadas ou distanciadas do latim, a missa continuou a ser em latim, pois era e continua sendo a língua da Igreja Católica. Só o Concílio Vaticano II, se não estou errado, é que modificou isto, permitindo o ofício da missa nas línguas vernáculas.
É irônico pensar que Dante Alighieri, para escrever em defesa da língua vulgar – o florentino, que depois se tornou a língua da península itálica –, ele o fez em latim, num tratado, o primeiro do mundo pré-renascentista, chamado De Vulgari Eloquentia (Do Falar Comum). Se não fosse assim, ele não teria tido sucesso. Entenda-se aqui que vulgar é sinônimo para comum. Foi a partir da língua vulgar florentina que ele escreveu a Divina Comédia, permitindo que a língua se alastrasse, de forma a construir o que chamamos, hoje, de italiano. Ainda assim, há muitos dialetos na Itália atual.
Respondendo diretamente à sua pergunta, sobre a Igreja: Sim, a língua é instrumento de poder e a Igreja fez este uso. A Igreja não é diferente da sociedade. Ouso até dizer que a sociedade ocidental não seria o que é se não fosse a Igreja, o que não significa que devemos nos submeter à sua vontade. Raciocinemos, contudo, que as populações ágrafas foram dominadas pelos povos que conheciam a escrita. Mesmo povos que conheciam algum tipo de escrito sucumbiram diante de outros que detinham uma civilização construída com base na escrita alfabética. A maior revolução que o mundo jamais presenciou foi a da aquisição da linguagem duplamente articulada, o que nos afastou dos outros seres vivos, que possuem apenas linguagem. A dupla articulação permitiu-nos não só a separação, mas também a subjugação dos demais seres vivos. Não era de se esperar que, entre nós mesmos, ela fosse o meio, o instrumento de dominação, criando hierarquias com vistas ao poder?
Enfim, acredito que nada se resolverá mudando-se apenas palavras. O trabalho árduo, que temos pela frente, no sentido de construir uma sociedade digna, passa, necessariamente, pela educação ao alcance de todos. Quando estaremos dispostos a começá-lo?
Estas questões são muito complexas e dariam, na realidade um tratado. Vamos ver se consigo responder o essencial.
Em primeiro lugar, acho que deve ter havido um engano ou de minha parte ou da sua, com relação à língua ser imutável. A língua é um sistema, como você sabe, que se realiza na linguagem. O sistema abriga muita coisa, que ali permanece, mas só se manifesta no uso. De tal forma que nem tudo o que ali se encontra, se utiliza, pois fica em um estado de possibilidade, podendo ou não um dia ser recuperado pelo uso. Sempre digo que o uso é o senhor da língua, ele é quem determina o quê e o como. Mas não estou sendo original. Horácio, o poeta latino do século I a.C., já dizia isto na sua Epístola aos Pisões, conhecida como Arte poética.
Dentro da língua há uma parte que pertence à sua gramática interna, à sua estrutura, formada pelos morfemas gramaticais, e outra pelos morfemas lexicais. No que diz respeito à sua estrutura, a língua pouco muda e, quando muda, o faz de modo muito lento. Podemos dizer que é como o esqueleto que vai se adaptando às mudanças do corpo, mas o faz lentamente, não de modo abrupto. Já a parte lexical recebe mudanças diárias, frequentes e sistemáticas. Dito de outro modo, podemos afirmar que não se cria uma nova preposição há séculos – literalmente, há séculos! –, mas substantivos, adjetivos e verbos são criados diariamente, sem cessar, acompanhando a evolução das profissões e dos costumes, por exemplo.
Com o advento da informática, criou-se o verbo deletar, para dizer “apagar”. Pois bem, “deletar” não é nenhuma novidade, nem mesmo é inglês. Está no sistema das línguas neolatinas ou novilatinas, como queiram, pois é formado pelo supino do verbo “delĕo, delēre”, da segunda conjugação, com o sentido de “apagar”, “destruir”. Como se sabe, pela estrutura do latim, o supino serve a criar verbos frequentativos. Do supino “deletum”, o sistema prevê a formação de *deleto, *deletāre (formas teóricas permitidas pela lógica do sistema), de onde surgiria deletar, no português. Observe que, mesmo sendo uma criação para o léxico, nada se faz aleatória ou arbitrariamente. Há uma lógica interna guiando a nova formação de palavras. Do mesmo modo que de cano, canĕre, cantar, de cujo supino cantum formou-se o verbo frequentativo canto, cantare, resultando em cantar, em português.
O léxico, portanto, está sempre em franco processo de evolução, enquanto a morfologia estrutural é lenta e necessita de mais tempo para se modificar. Mesmo quando a modificação acontece na parte estrutural, permanece um arcabouço que permite o reconhecimento das estruturas antigas da língua. Assim é que o nosso plural se faz com o acréscimo do morfema /-s/, porque proveniente do plural do acusativo latino, caso lexicogênico, cujas palavras masculinas e femininas sempre faziam o plural em /-s/. Podemos citar o caso do plural em /-ão/, para se ver que não existe complicação, nem há exceções, porque o mecanismo, que permite as diferenças entre mão/mãos; pão/pães, e leão/leões, encontra-se no sistema linguístico. Todas estas diferenças foram ditadas não pela aleatoriedade, mas por uma lógica interna da língua:
mão: manus (acusativo plural) > manos > mãos (o /-n/ sobe e nasaliza o /-a/)
pão: panes (acusativo plural) > pães (mesmo processo anterior)
leão: leones (acusativo plural) > leões (idem)
pão: panes (acusativo plural) > pães (mesmo processo anterior)
leão: leones (acusativo plural) > leões (idem)
Os estudos da Linguística Histórica mostram as transformações de uma língua e entre as línguas. Sabe-se, por exemplo, que o indo-europeu é uma língua teórica, porque muitas das línguas atuais, por mais diversas que sejam, mostram semelhanças na morfologia, na fonética e na sintaxe. A palavra “mãe”, por exemplo, apresenta o mesmo radical em 12 línguas muito antigas: sânscrito, avéstico, armênio, grego, albanês, irlandês, latim, velho alemão, islandês, lituano, velho eslavo e tocariano, ainda que elas sejam distintas e distantes geograficamente. Pode-se observar que a forma teórica *mātā, é proveniente do estudo dessas línguas citadas, todas apresentando uma raiz comum para “mãe”.
Da língua histórica, documentada, como o galaico ou galego-português, a partir do século XII, ao português camoniano, há uma depuração notável, tendo em vista que, a partir de Camões, com Os Lusíadas, em 1572, a língua portuguesa se consolidou, ao se separar definitivamente do galego. De Camões para cá, as mudanças estruturais são poucas, havendo mais mudança de léxico, grafia e fonética, ditadas pelo uso, sobretudo quando as barreiras geográficas separam Portugal e Brasil. O mesmo acontece com o inglês da Inglaterra e dos Estados Unidos; o francês da França e do Canadá. Tudo isto ditado pelo uso. Mas são a mesmíssima língua, na sua estrutura.
O chamado grego homérico, que remonta ao século VIII a.C., era cheio de dialetos – ático, jônio, dórico, arcádio, cipriota... – embora, na Ilíada e na Odisseia, predomine o jônio. Já o grego de Platão se firmou com a utilização do ático. O grego do Novo Testamento consolidou-se como coiné, para a bacia do mediterrâneo, com a expansão operada por Alexandre, a partir do século III a.C., o que permitiu que as pessoas pudessem se entender, numa segunda língua comum a todos. Um dos resultados dessa expansão foi a escritura do Evangelho em língua grega, de modo a atingir também os gentios e não apenas os hebreus. Todas estas formas da língua grega estão, contudo, no mesmo sistema. O grego moderno resolveu simplificar o sistema e tomou uma estrutura um pouco diferente, mas em que se pode ver o esqueleto do grego mais antigo. Foram necessários dois mil anos para que isto acontecesse.
Na língua portuguesa, estamos acompanhando, no Brasil, uma mudança que poucos percebem, com a queda do pronome “vós” e do “pretérito mais-que-perfeito simples”. São raríssimos os que os utilizam escrevendo – falando, ninguém! –, embora, sejam ainda de uso corrente em Portugal. É o que aconteceu na língua francesa com o “passé simple”, substituído pelo “passé composé”, ambos traduzindo o nosso pretérito perfeito do indicativo. Mesmo deixando de ser usado, o pronome “vós” e o “pretérito mais-que-perfeito”, no Brasil, tanto quanto o “passé simple”, na França, continuam no sistema da língua e podem, novamente, ser trazidos de volta. Quem vai determinar é o uso.
O que ocorre, normalmente, numa língua, é o sistema mais duro da estrutura se livrar de formas mais complexas, embora elas permaneçam na possibilidade, e buscar uma simplificação. Desconheço que o sistema admita mudanças internas, para torná-lo ainda mais complexo. Por este motivo e por conta da imposição do uso é que duvido muito que “todes”, “menines” e outras formas mais esdrúxulas, como “todxs” ou “tod@s”, sejam adotadas pelo sistema. Há pessoas que vão usá-lo, mas não a maior parte da população, porque não se impõe uso de língua por decreto. Não funciona. O uso é rebelde e não dá a mínima para leis ou decretos externos, o que ajuda a língua a ser conservadora. Se não fosse assim, há muito que a crase, uma inutilidade na língua portuguesa, já teria ido para o lixo. José de Alencar bem que tentou.
Em suma, as línguas mudam, mas não na velocidade apregoada por alguns linguistas ou pelo desejo de algumas pessoas. As mudanças estruturais que, porventura, ocorrerem na língua portuguesa só serão vistas, muitos séculos para a frente.
No que concerne ao emprego da expressão “Eu vos declaro marido e mulher”, digo, Wylka, que não entrarei na questão ideológica, com relação ao feminismo ou ao patriarcado. Respeito a sua visão. Como não vamos estar de acordo, pois temos as nossas convicções, e nem eu quero convencer você e acredito que você também não quer me convencer, gostaria de dizer apenas que o uso é que deu à palavra “marido” um peso opressor, que, estou convencido, não mudaria se, em lugar da expressão “marido e mulher”, fosse utilizado “homem e mulher”, tendo em vista que o uso dado à palavra “homem” – na sua origem, “ser humano” – , também a contaminou de macheza opressora.
A palavra “marido” (μεῖραξ) significava, inicialmente, “moça”; depois, “rapaz” – sentidos que se perderam –, possivelmente para marcar a idade do casamento. O termo está vinculado ao verbo meíromai (μείρομαι) com o sentido de “o que cabe em partilha”. Acredito mesmo que, quando soubermos respeitar uns aos outros, não importará se o termo será “homem”, “marido”, “companheiro” ou “igual”. Mas estamos longe disso e as pessoas, infelizmente, fazem do uso linguístico uma forma de poder pessoal. No entanto, não podemos negar o direito que muitos reivindicam do uso destes termos. Sequestrá-lo, sob o falso argumento da inclusão ou de machismo, seria uma imposição e, portanto, nada democrática ou respeitosa. É o que me cheira, quando vejo projetos de lei neste sentido. O debate, contudo, continua em aberto.
Quanto ao latim, eu poderia dizer que as línguas que dele derivam – português, italiano, espanhol, francês, romeno, catalão, galego, provençal... – não existiriam como tais, se não fosse a sua expansão, e teriam custado a se revelar como línguas históricas. Mesmo as línguas que não são neolatinas, elas se beneficiaram do latim, para poder se formar. O latim se tornou língua comum ou coiné, durante a Idade Média, ajudando que povos eslavos, povos escandinavos e até finlandeses, cuja língua é de um ramo diferente dos escandinavos, além dos húngaros, se entendessem. O inglês tem muito do latim, na sua concisão, no seu vocabulário e na sua compreensão explícita do aspecto verbal, denotando ação continuada ou ação acabada.
A Igreja usava o latim para se fazer entender em todos os lugares que chegava, porque o latim passou a ser a língua comum na Europa. Depois que as línguas nacionais se criaram, derivadas ou distanciadas do latim, a missa continuou a ser em latim, pois era e continua sendo a língua da Igreja Católica. Só o Concílio Vaticano II, se não estou errado, é que modificou isto, permitindo o ofício da missa nas línguas vernáculas.
É irônico pensar que Dante Alighieri, para escrever em defesa da língua vulgar – o florentino, que depois se tornou a língua da península itálica –, ele o fez em latim, num tratado, o primeiro do mundo pré-renascentista, chamado De Vulgari Eloquentia (Do Falar Comum). Se não fosse assim, ele não teria tido sucesso. Entenda-se aqui que vulgar é sinônimo para comum. Foi a partir da língua vulgar florentina que ele escreveu a Divina Comédia, permitindo que a língua se alastrasse, de forma a construir o que chamamos, hoje, de italiano. Ainda assim, há muitos dialetos na Itália atual.
Respondendo diretamente à sua pergunta, sobre a Igreja: Sim, a língua é instrumento de poder e a Igreja fez este uso. A Igreja não é diferente da sociedade. Ouso até dizer que a sociedade ocidental não seria o que é se não fosse a Igreja, o que não significa que devemos nos submeter à sua vontade. Raciocinemos, contudo, que as populações ágrafas foram dominadas pelos povos que conheciam a escrita. Mesmo povos que conheciam algum tipo de escrito sucumbiram diante de outros que detinham uma civilização construída com base na escrita alfabética. A maior revolução que o mundo jamais presenciou foi a da aquisição da linguagem duplamente articulada, o que nos afastou dos outros seres vivos, que possuem apenas linguagem. A dupla articulação permitiu-nos não só a separação, mas também a subjugação dos demais seres vivos. Não era de se esperar que, entre nós mesmos, ela fosse o meio, o instrumento de dominação, criando hierarquias com vistas ao poder?
Enfim, acredito que nada se resolverá mudando-se apenas palavras. O trabalho árduo, que temos pela frente, no sentido de construir uma sociedade digna, passa, necessariamente, pela educação ao alcance de todos. Quando estaremos dispostos a começá-lo?