Eu ouvi um grito, um ruído de pneus riscando o asfalto, vi uma bola atravessando a estrada. Olhei para um lado assustado, meu espanto se r...

Lágrima de menino

cronica infancia nostalgia progresso cidade pequena
Eu ouvi um grito, um ruído de pneus riscando o asfalto, vi uma bola atravessando a estrada. Olhei para um lado assustado, meu espanto se refletiu no espelho, mais assustado do que eu era o rosto de um menino que, poucos metros dali, mirava para debaixo do carro.

Aconteceu perto de casa, essa semana, quando eu voltava de viagem. Eu vinha desligado, pensando no mundo frenético, grande e fascinante que é lá fora.

Vinha também pensando que, por mais fascinante que seja esse mundo e tudo o que nele existe, uma hora ele nos cansa. Ainda bem que há nossa casa para nos abrigar. Hora de voltar. E quando a gente põe os pés em casa, suspira, deixa os ombros caírem e diz: Obrigado meu Pai! A outra frase é: Viajar é muito bom, mas o melhor lugar do mundo é a casa da gente!

Eu nasci no interior, numa cidade pequena, fria, distante do litoral, longe de tudo. A gente achava longe porque a estrada era ruim, de barro e cheia de costelas de vaca (aquelas pequenas ondulações que a gente costuma chamar de catabi). E também porque os automóveis daquele tempo eram jeep, fusca, rural. Por isso, tudo era longe, difícil de chegar.

Mas era bom, por saber que as dificuldades são ricas lições e a distância de qualquer objetivo é um dos maiores prazeres da vida. Chegar em Campina Grande era uma grande aventura. Até o encantar-se com a primeira visão da cidade, representada por seus colossais edifícios (Campina só tinha três: O Rique, o Palomo e o Lucas ), havia o desafio de acordar de madrugada, enfrentar o frio cortante da nossa rua, suportar cinco horas de viagem num ônibus agitado e barulhento, enjoar no caminho.

Voltava cheio de presentes, o coração repleto de novidades. Ficava sem entender porque a volta era sempre mais perto. Um dia perguntei a meu tio e ele explicou: "A volta é mais perto porque já gastamos o prazer da expectativa".

Os anos passaram, veio o asfalto, carros modernos e velozes. Entretanto, minha cidade continuou distante, talvez até mais. Embora o planeta tenha se tornado mais quente, o lugar onde passei minha infância ficou mais frio.

O que aconteceu? Quase tudo mudou, mudou a vida, os valores, os costumes, pessoas cresceram, casaram, partiram, outras nos deixaram de vez, principalmente as mais queridas.
A acácia da calçada morreu, a lagoa onde a meninada tomava banho secou, o campinho de futebol virou um amontoado de casas habitadas por desconhecidos. Restaram lembranças e o entendimento de que o passado é sagrado, e o sagrado é para ser sentido, não tocado.

Vinha pensando nessas coisas enquanto reparava a paisagem cinzenta e desfolhada, a fumaça de alguns focos de incêndios no mato devastado.

Foi quando ouvi o grito e o ruído do freio brusco que me devolveu à realidade. O menino pegou o que sobrou da bola, estava murcha, rasgada, vazia como seu peito. Veio um adulto, possivelmente seu pai, que disse:

— Tem problema não, já estava velha, quase não prestava mais.

Mas o menino não pensava assim. Vi correr uma lágrima. Seu olhar estava distante e frio como minha cidade. Então peguei a carteira, dei-lhe vinte reais.

— Compra uma nova!

E de repente seu rosto ficou vivo, quente, iluminado; era a mesma luz que via no espelho do meu passado.

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  1. Como é bom um texto cheio de boas lembranças 👏👏👏👏👏👏👏👏👏❤️❤️❤️❤️❤️

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    1. A gente olha pra o passado, a lembrança traz grandes e inesquecíveis instantes!

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  2. Maravilha de texto! Reminiscências de vidas passadas que viajam na nossa mente e nos leva a imagem que resistem ao tempo! Parabéns!

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  3. Maravilha de texto! Reminiscências de vidas passadas que viajam na nossa mente e nos leva a imagem que resistem ao tempo! Parabéns!

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  4. Maravilha de texto! Reminiscências de vidas passadas que viajam na nossa mente e nos leva a imagem que resistem ao tempo! Parabéns!

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