As folhas secam pelo sol, pelo fogo, pelo tempo, mas ainda preservam a beleza. Podem mudar de lugar, porque assim desidratadas, voam com mais leveza e rapidez. De Bananeiras a João Pessoa, seguem uma escala de cores temporária, do verde ao cinza, como se o brejo se tornasse sertão.
“Perdoa-me, folha seca,
Não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
E até do amor me perdi” (Cecília Meireles).
Antigamente procuradas para o preparo de arranjos natalinos e árvores de natal, às vezes acompanhadas dos galhos secos, enrolados em chumaços de algodão, ou pintadas com tinta prateada. E, em casa, a tradição nos primeiros dias de dezembro, reunia a família em torno da árvore, para a ornamentação. O pai, montador responsável pela tarefa. A distribuição das pequenas lâmpadas ao longo de sua altura, iniciava o evento. Em seguida, a abertura das caixas de papelão recobertas com papel de seda branco, contendo os enfeites guardados. Um fundo musical próprio da época, em baixo volume, permitia a escuta da conversa, sobre como preparar o coração para o Natal. Um dia aguardado ansiosamente, com participação na escolha do lugar especial para as bolas, os sinos, as bengalas... por último, desembalar cuidadosamente o Espigão, que encerrava o acontecimento, posicionado no alto da Árvore. À noite, todos assistiam o teste da iluminação das luzes do jardim, coloridas, tonalizando as flores do velho jasmim.
“O valor da transitoriedade é valor de raridade no tempo” (Freud).
Atualmente essa cena descrita, evoluiu para a praticidade contemporânea. As pessoas contratam preferencialmente, funcionárias das lojas de decoração, para a ornamentação de suas residências. Não há relação afetiva e simbólica com o ato. E assim, a abstração foliar e suas associações, partiu da estrada do brejo rumo a Paris, pois o som do carro complementava a observação regressiva, com a música Feuilles Mortes... de Joseph Kosma e letra do poeta Jacques Prévert. A interpretação magistral de Gilbert Bécaud, entre tantas, durante décadas, a mais bonita e intimista. Um recorte na saudade, com lembranças de um romance passado, e como tal, perfeito. Relata um sentimento que superou a distância de tão intenso.
“Há desejos a longo prazo que duram toda a vida, de modo que não se pode esperar o seu cumprimento” (Rilke).
A evocação de uma música que marcou essa história de amor, e a culpa? Do tempo, certamente, um destruidor de emoções!
”O tempo separa os casais tão docemente, sem fazer barulho”. “As folhas mortas que servem de título, são sinais do outono europeu, ou da maturidade”. “Repara que o outono é mais estação da alma do que da natureza” (Carlos Drummond de Andrade)"
Prévert, na sua memória poética, questiona se a antiga companheira ainda lembra de tudo... atenta para as perdas e para as peculiaridades do que foi vivido, e... guardado... como todo reprimido tende a voltar à superfície. Ele recolhe as folhas secas do passado com a pá da recordação.
“Somente a lembrança de um sofrimento passado cria a ilusão de um bem presente” (Schopenhauer).
A juventude e a paixão estavam no sol mais brilhante, na identificação (eu te amava e tu me amavas), e perdida entre outras palavras, discretamente, o termo” remorso”, outro vilão do relacionamento. Quem perdeu quem?
A consciência do luto e seus riscos poderia ter alterado o final, levando o casal a um futuro a dois. E encerra com o mar apagando os passos do par desunido, e agradece à vida que proporcionou a felicidade, mas que viverá escutando a canção que ela cantava... sempre.
O refrão volta às imagens perdidas, e serve de alerta a quem encontrar um outro, que corresponda às suas expectativas com tal fidelidade, possa evitar a dor da separação, um caminho livre de folhas mortas...
Ao final da música, o sol rapidamente brincava de esconde-esconde das fotos do entardecer, um desejo de ”repetir” um hábito dos velhos tempos surgiu, após o encantamento com Bécaud... e estacionando no acostamento, com uma tesoura recém comprada para novas plantas, e a disponibilidade de arranhar a pele com essa aventura, as folhas secas foram cortadas, do tamanho exato do suporte que aguardava. A sensação agradável e a adrenalina, disfarçou os espinhos, carrapichos, que atrapalhavam o acesso às melhores conquistas.
Com um quase buquê de folhas diversas, agora já se despedindo do dia, o tempo sofreu uma dobra e proporcionou semelhante prazer.
“Eu não vivo em mim mesmo, mas tomo parte daquilo ao meu redor, e para mim, montanhas são um sentimento” (Lorde Byron).
No dia seguinte, um arranjo natalino, original e fluido, foi composto delicadamente, e transformou-se no centro das atenções familiar. As folhas secas nunca foram tão belas, ressignificadas, num misto de passado e presente.
Folhas secas, vegetais,
Folhas finas, lâminas de ouro
de Florença a Veneza. . .
De papel-ofício, de seda. . .
Folhas perfumadas,
Nos antigos cadernos de poesia.
Palavras imaginadas,
desenhadas,
escritas.
Páginas perdidas
de um calendário.
Folha-pauta musical
ecoando sem instrumento.
Folha-pele do carinho,
que se corta e cicatriza.
Folhas secas, folhas mortas,
Itinerário desejado,
Do melancólico esquecimento.