Para quem nunca ouviu falar, a atividade divinatória das Pitás perdia-se no tempo, e era terreno exclusivo das mulheres. Houve um tempo, porém, quando a própria Pitá era viva e a filha sequer lhe fazia sombra, em que o pároco local investira pesado contra ela. Através dos sermões dominicais o padre Vicente Xavier de Farias (que receberia dos Dantas o apelido de Padre Veneno e que era tio do cordelista Leandro), buscou, sem sucesso, afastar a supostamente nefasta influência exercida por ela sobre as beatas da paróquia. Como não podia deixar de ser, o exegeta cristão falava em bruxaria.
Antigas e paroquianas ciumeiras estariam, pois, na base da crença popular generalizada nos dotes sobrenaturais de Pitá, a velha, dotes de herança que teriam naturalmente migrado em favor de Pitá, a jovem.
Porém, Ondina, mulher de poderoso senso prático não se ia deixar levar por tais crendices. .
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Reconhecia na agílima anciã (cuja buliçosa natureza se mantinha entretecida num eterno manuseio de agulhas, dedais, monóculo, pêras, bastões, linhas, alfinetes, bilros, e toda uma minuciosa artilharia acantonada em delicadas caixinhas de madeira ou papelão, de onde os pinçava e trazia à luz para as delicadas tarefas, às quais, poucas ainda se propunham, e certamente sem dar-se conta de que a preciosa alfaia exibia, por si só, não apenas um misterioso poder de doma espiritual, mas exalava ainda certa aura de frescor e mistério, e que remontasse talvez às primeiras inovações trazidas das Cruzadas) o penetrante juízo. Acostumara-se àquele riso anárquico, ao talento para a histrionia das falas. Acreditava que ela havia puxado à singular inteligência da mãe, e essa, sabia Deus a quem.
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É pequena, a brincar no terreiro. A mãe está em cima do calçadão, sentada por trás do almofadão. Debaixo dali, vê os braços da mãe movimentar-se, com apenas a cabeça por cima deles. Lembro de ver o rosto dela por cima e atrás do queixo e da garganta, dessa parte daqui, n’sabe? Estica o pescoço e vai passando a palma da mão da traqueia para a mandíbula, para descrever. Ela dixe: Vão brincar ali, mas não arenguem, Era pra gente descer o calçadão e ganhar o terreiro, às suas vistas, Segure a mão dela, Tatim, Era pra não cair. Quase não consigo enxergá-la com tanta luz. Tem luz vindo, luz voltando, vinda dos dois lados, jatos brancos, outros amarelados, azuis, tudo muito pálido, viu, se pelo menos ela ficasse com os mãos paradas, mas não, na minha cabeça vejo tudo ligeiro como aqueles bonecos de rodar no vento, feitos de lata, às vezes seus braços magros e transparentes se confundem com os jatos de luz, e a boca se abre na conversa que morre na minha lembrança, viu, o rosto também se mexe muito para os lados, e para cima, e ela fala, e fala, mas já não vejo com quem, e ri, e acontecia dela sempre rir enquanto falava, fia, acho que é por isso que dizem que puxei muito a ela, ora mas se não era de puxar. Mas depois vem a lembrança daquele cachimbo, sem caber direito, mas que gostava de pitar, isso gostava.
Mas lembro dela pitando, sim. Mas não pode ser dessa hora, deve ser de outra que se misturou. Deve ser por isso que eu via os bilros feito uns cachimbinhos. A vida inteira me lembro dela assim, falando e trançando a renda, desaparecendo no meio da fala, transvazada de luz. Pobrezinha da minha mãe. Gente que só, fia, vinha de longe pra ouvir o que a bichinha dizia, mas disso só sei hoje, daquele tempo só lembro disso mesmo, e da voz dela, muito fina, esganiçada, sempre dando fé da gente, quando eu pegava alguma coisa, um bicho do chão, lagarta, dela botar sentido e gritar do alto do calçadão, Antonia largue disso, de largar morrendo de medo”.
(Do Romance “O Verniz dos Santos Policromados”, Alberto Lacet, 2014)
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