Ah, meus amigos, minhas amigas, há certos acontecimentos ou ocasiões que servem para nos despertar do marasmo que a mesmice do cotidiano teima em nos fazer vítimas, desse e de outros padecimentos. Querem que explique melhor? Vamos lá.
Algumas vezes precisamos de um balde d’água gelada sobre nossa alma preguiçosa. É como que se aquele frio desconforto nos dissesse: “Acorda, criatura! Veja o que está acontecendo no seu entorno.” Explico.
Voltando de Campos do Jordão, rumo a São José dos Campos, desce-se a serra pela Rodovia Floriano R. Pinheiro até se encontrar a Dutra, principal artéria rodoviária que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Foi o que fizemos; eu, duas irmãs e a filha caçula. Cumprido essa parte final do percurso, passando por Caçapava e chegando ao distrito de Eugênio de Melo, lá estava ele, todo imponente, sustentado por grossos pilares de concreto: um viaduto! Não era um viaduto qualquer, mas sim um que levava o nome de meu pai: Viaduto Prof. Augusto P. da Matta.
Paramos para as fotos protocolares, naquelas tentativas de eternizar lembranças, de perenizar registros importantes de nossa história de vida, mas saindo dali os efeitos daquele momento foram superlativos e minha alma acabaria entrando em ebulição. Chegou-me uma indagação, uma pergunta que ia aos poucos levando luz àqueles cantinhos escuros de minha existência.
Quem fora aquele homem? Quem fora meu pai? Por que aquele preito tão expressivo?
Nesse cipoal de lembranças pude extrair registros significativos de sua alma generosa, sempre disposta a ativar o botãozinho da solidariedade, talvez uma de suas principais virtudes. E por falar em virtudes, ele fora um homem possuidor de defeitos toleráveis e virtudes imprescindíveis. Ele era assim.
Aguerrido nas lides políticas, nos embates de ideias e pontos de vistas, mas respeitava os que se opunham aos seus preceitos e, o que me parece mais importante, não cultivava o ódio e a tolerância era para ele mais do que uma virtude, era uma ferramenta para estabelecer laços de boa convivência. Foi exatamente isso que veio à tona nesse entardecer de domingo. Um fato, uma tragédia que marcou definitivamente nossas vidas, mas dentre outras coisas de onde devo ter extraído uma lição que me é um norte nesses tempos de intolerância em que vivemos.
Meu pai foi preso político em 64, ficou trancafiado em um navio ancorado na costa de Santos, o Raul Soares de triste memória. Ali passou poucas e boas, mas sem uma acusação formal acabou sendo solto meses depois. Durante os anos seguintes foi preso e depois solto diversas vezes, sempre que as baionetas se arrepiavam. Prendiam “para averiguações”, diziam os algozes.
A pecha de agitador e a de comunista, estavam ali para lhe causar desconforto, impedir que se fixasse numa ocupação laboriosa, embora pouco tivesse de agitador e de comunista quase nada restara, pois refizera conceitos e a ideologia dos bolcheviques e dos barbudos de Sierra Maestra, de paixão obstinada foi se arrefecendo aos patamares de uma discreta simpatia.
Mas a perseguição implacável e suas consequências nefastas, não poderiam deixar de cravar suas marcas sob nosso teto. E que marcas! Afetavam-nos por diversos vieses, dos problemas na escola às panelas, sofremos o tal “pão que o diabo amassou” naqueles tempos sombrios.
Um dia a resiliência de minha mãe havia se esvaído e ela resolveu por termo àquelas destemperanças da vida e tomou a decisão de fazê-lo de forma contundente e espetacular. Digo espetacular na mais terrível conotação deste vocábulo. E como o fez? Imolou-se. Cobriu-se de álcool e ateou fogo. Aquele ato fez as baionetas se recolherem por um tempo, mas nossos corações levariam aquela marca para o resto de nossas vidas.
Numa manhã fria e cinzenta de agosto nos despedimos de nossa mãe. Fizemos aquela triste caminhada de brações dados. À frente meu pai e seus quatro filhos. Muita gente naquele cortejo tão cinzento e triste como aquela manhã sem sol.
Sepultaram minha heroína, meu anjo de palavras doces quando o coração distribuía chamegos ou severas quando a intuição dizia que era preciso refazer as rotas daquela criançada buliçosa. Fomos ficando para as despedidas dos que estiveram ali emprestando sua solidariedade, até ficarmos sós. Então meu pai nos abraçou e fez seu pedido.
Mesmo diante daquela tragédia que nunca carregássemos ódio em nossos corações, inclusive àqueles que indiretamente haviam contribuído para aquela atitude de sua mulher, nossa mãe.
— Não se pode odiar alguém só porque pensa diferente de você. Não permitam que o ódio entre por nossa janela. Se não o fizerem, de nada terá valido minha luta, minha história de vida. Façam a parte vocês, sem medo, mas também sem ódio - concluiu ele.
Precisava dizer isso.