Os russos são admiráveis no reconhecido empenho à arte e à cultura. Tornaram-se produtores notáveis de literatura, música, dança, filosofia, ciência, dramaturgia, pintura.
As duras vicissitudes que o destino os obrigou a enfrentar, fizeram-nos protagonistas de uma história marcada por imperiosos desafios, a começar pelo rigor de invernos tempestuosos, e por consequências da ambição, exploração, injustiças sociais, revoluções, guerras civis e militares, tragédias, fome, tudo enfrentado sem arrefecimento da coragem e da criatividade.
Library Of Congress
Associadas à solidez de propósitos dos filhos da ex-capital do império russo, berço da revolução comunista, a pugência artístico-cultural, a força econômica e a posição estratégica no Mar Báltico acresciam mais atrativos à indomável ambição do ditador nazista. A cidade foi o centro musical do país durante os séculos 18 e 19, onde viveram e produziram compositores como Michael Glinka, Modest Mussorgsky, Nikolay Rimsky-Korsakov e Aleksandr Borodin. Isso o fazia ainda mais alucinado e determinado a dominá-la.
Cientes ou pressentidos, os russos anteviram a fúria dos alemães e finlandeses, e logo construíram várias faixas de defesa, com barricadas quilométricas. Mas nada impediu o cerco a se fechar. No início de setembro de 1941, a “Veneza do Norte”, que de São Petersburgo passara a Petrogrado, depois Leningrado, para depois ter de volta o nome que homenageia seu idealizador, o czar-imperador “Pedro, o grande”, foi cruel e inteiramente ilhada pelas forças alemãs.
A
pós um intenso ataque que perdurou por dias e noites, Hitler decidiu que as bombas não seriam as armas com as quais seu exército dizimaria Leningrado, e sim a desnutrição. Ordenou que todas as fontes de provisionamento, energia elétrica, óleo, carvão, alimentação, integração com o mundo, fossem cortadas, dando início ao diabólico “Cerco de Leningrado”, uma das mais sangrentas batalhas enfrentadas por uma grande cidade.Toda a inventividade plausível foi posta à prova. Lagos congelados serviram de vias de tráfego em busca da vida, entre campos e parques onde ainda havia algum alimento. Tudo se fazia comestível, de aves e minhocas a raízes e cascas de árvores.
Os bombardeios continuavam implacavelmente ordenados por Hitler, a quem os chefes militares já recomendavam parar, acreditando no irreversível domínio da enfraquecida São Petersburgo. Mas o nazista intuía negativamente, ciente da impressionante força daqueles cidadãos, a sobreviver com tamanha resistência. Ele tinha noção de que lidava com gente sensível, próspera, coesa, evoluída em muitos aspectos. Um povo que representa o mundo em exímia inventividade nas vertentes mais expressivas. No balé, no teatro, pintura, romance, arquitetura, filosofia, ciência, era difícil encontrar algum segmento no qual inexistisse uma marca dos russos. Isso amedontrava Hitler! Sobretudo o espírito austero e indomável sob o qual se postaram, como na revolução de 17, desbancando a tirania imperialista em busca de independência e justiça.
N
esse trágico cenário de inanição, com bombardeios constantes, corpos espalhados pela cidade sem direito a sepultamento, grande carestia, um dos célebres personagens da cidade trabalhava com afinco em uma nova obra: o músico Dmitri Shostakovich. Ele era diretor do Conservatório de São Petersburgo, onde corajosamente se confinava para continuar a escrever, à luz de candeeiros, a sua sétima sinfonia, intitulada “Leningrado”, em homenagem à cidade natal.Conservatório de Leningrado (São Petersburgo) bombardeado durante o cerco da cidade, em 1942.
“Nem os ataques selvagens, os aviões alemães, nem a lúgubre homosfera da cidade sitiada conseguem impedir o fluxo do que ora estou a criar. Trabalho com uma intensidade desumana que nunca havia alcançado antes”.
Agora era tratar de apresentá-la, ainda que o clima de guerra só se agravasse, com danos crescentes. Mais uma vez, imbuído do latente idealismo, sensibilizou músicos que se aliaram à beleza da ousada criação, da iniciativa, e começou os ensaios que culminaram com a estreia em Samara, no dia 5 de março de 1942, pela Orquestra do Teatro Bolshoi,
CC0
Entretanto, a energia e a obstinação de Shostakovich em divulgar a Sétima para o mundo estavam apenas começando. Com ajuda de influentes contatos, conseguiu a microfilmagem da partitura e seu escoamento para outros países, via Teerã. Assim, foi executada com transmissão da BBC, pela Orquestra Filarmônica de Londres, dirigida pelo maestro Henry Wood, em 22 de junho do mesmo ano. Em seguida, foi apresentada em um concerto do secular festival “The Proms”, no Royal Albert Hall, também em Londres, no dia 29 de junho. O lançamento norte-americano aconteceu em Nova York, 19 de julho de 1942, pela Orquestra Sinfônica da NBC dirigida por Arturo Toscanini, aclamado regente italiano.
A
essa altura a Sinfonia Leningrado era notícia corrente no meio artístico, popular, político, militar, dentro e fora da Rússia, atraindo muita curiosidade. E São Petersburgo sucumbia sob lastimáveis condições de sobrevivência… Contudo, a resistência surpreendia e parecia incentivar o inimigo a intensificar o combate. Hitler não desistia. De um lado, as armas, a ambição, a monstruosa estratégia de isolamento. Do outro, a briosa intrepidez de um espírito notavelmente criador, dono de coração movido por patriotismo pulsante de liberdade.M
esmo com atividades encerradas há meses e parte dos músicos falecidos, os diretores do Departamento de Artes da Cidade de Leningrado, certos do apoio dos remanescentes, anunciaram os ensaios da orquestra para executar a sinfonia pela primeira vez na terra natal de seu autor. No dia seguinte, o jornal Pravda anunciava:
“A partitura da Sétima Sinfonia de Dmitry Shostakovich foi entregue a Leningrado de avião. Sua apresentação pública acontecerá no Grande Salão da Filarmônica".
"Meu Deus, quão magros eles estavam! Como essas pessoas se animaram quando começamos a tirá-los dos lúgubres espaços que habitavam. Choramos quando eles trouxeram suas roupas de concerto e os instrumentos para os ensaios que começaram no estúdio coberto de gelo".
Leningrado (S. Petersburgo), 1942 ▪ Ensaio dos músicos de Leningrado, sob a regência do maestro Karl Eliasberg, para a apresentação da 7ª Sinfonia de Shostakovich
Como medida de estímulo, as estações de rádio voltaram a difundir música e a população alquebrada pouco a pouco se associava à causa. A performance sinfônica se tornara um dever cívico. Alimentação e transporte extras aos mais necessitados foram providenciados e já se percebia novo alento na tétrica cena urbana.
O
s ensaios ocorreram sob comovente empenho e as circunstâncias dolorosas pareciam estimular à concretização de um objetivo já encarnado em todos. Os ânimos oscilavam perante o frio, a complexidade da obra e a notícia de que três músicos haviam falecido com o agravamento da saúde cada vez mais precária. Cenários de fome e desespero eram flagrados cotidianamente em todos os recantos, ruas vazias,
Relatos posteriores referiram-se ao assombroso entusiasmo como ânsia de demonstrar que São Petersburgo, embora morrendo, estava viva, e o desejo de que a sinfonia soasse aos píncaros só crescia. Afinal, Moscou, Tashkent, Novosibirsk, Kuibyshev, Nova York, Londres, Estocolmo, já lhe haviam assistido, mas o local onde a obra e o autor nasceram, ainda não. Viam nesta ideia uma merecida forma de homenagear um de seus filhos ilustres, Dmitri Shostakovich.
A preparação continuou em conjuntura inimaginável. Os músicos tinham os instrumentos defeituosos, estavam fracos pela fome, mas com ajuda da comunidade conseguiam atrair instrumentistas de bandas musicais civis e militares para aumentar a orquestra e a duração dos ensaios, frequentemente interrompidos por ataques aéreos, com bombas caindo em frente ao teatro.
Leningrado (S. Petersburgo), 1942 ▪ Fonte Music of Heroes
E
nfim a estreia! Marcado por insólita coincidência, Hitler havia predefinido o 9 de agosto de 1942 como a data da queda de Leningrado. Chegou a determinar que fossem impressos e distribuídos convites para requintado jantar em homenagem à tomada completa da cidade no luxuoso Hotel Astoria, construído em 1912 para a celebração de 300 anos do governo imperial russo. Mas até o exército nazista se espantou com o que ali aconteceu.Leningrado (S. Petersburgo), 1942 ▪ Soldado russo adquire ingresso para a apresentação da 7ª Sinfonia de Shostakovich
Às 18h00, as estações de rádio divulgaram uma gravação do maestro Karl Eliasberg anunciando à população:
“Um grande acontecimento na história cultural da nossa cidade acontecerá em alguns minutos. Vocês escutarão pela primeira vez a Sinfonia nº 7 do nosso notável compatriota Dmitri Shostakovich. Ele escreveu esta composição na nossa cidade enquanto o inimigo tentava insanamente entrar. Enquanto os porcos fascistas atacavam o continente e toda a Europa acreditava que Leningrado havia sucumbido, hoje daremos testemunho do nosso espírito, coragem e prontidão para lutar. Ouçam, Camaradas!”.
Leningrado (S. Petersburgo), 1942 ▪ Karl Eliasberg durante ensaio para a apresentação da 7ª Sinfonia de Shostakovich
Com os canhões calados, a plateia silencia. Os músicos, pouco a pouco, tomaram seus assentos causando impacto a quem não os via há tempo. Alguns vestiram mais roupa que o necessário para esconder a magreza.
H
á 5 anos, Olga Kvade, jovem leningradense que estava na plateia, hoje com cerca de 90 anos, prestou um comovente depoimento em documentário da BBC:
“No verão de 1942, um concerto notável aconteceu em Leningrado. Enquanto a cidade estava cercada pelas forças alemãs, uma orquestra de músicos famintos apresentou a sétima sinfonia recém-escrita de Shostakovich. Os lustres estavam brilhando. Era uma sensação tão estranha. Por um lado, era inacreditável — o bloqueio, enterros, mortes, fome, e a Sala da Filarmônica cheia — simplesmente incrível".
“Um conjunto inconcebível de músicos esfomeados, um compositor desgraçado e a resiliência da alma humana [...] Vivendo em Leningrado e constantemente confrontado com a selvageria da guerra, o compositor Dmitri Shostakovich traduziu o horror que viu em uma sinfonia que contaria a história de sofrimento, desespero, perseverança e esperança, sua e dos cidadãos, para o resto do mundo”.
Leningrado (S. Petersburgo), agosto, 1942 ▪ Apresentação da 7ª Sinfonia de Shostakovich, sob a regência do maestro Karl Eliasberg
"Leningrado e a Orquestra que desafiou Hitler”
▪▪
“Leningrado: cerco e sinfonia: a história da grande cidade aterrorizada por Stalin, faminta por Hitler, imortalizada por Shostakovich”
▪▪
“Sinfonia nº 7 de Shostakovich, música escrita com o sangue do coração"
▪▪
“Música de guerra: humanidade, heroísmo e propaganda por trás da Sinfonia nº 7”
▪▪
“Leningrado: cerco e sinfonia: a história da grande cidade aterrorizada por Stalin, faminta por Hitler, imortalizada por Shostakovich”
▪▪
“Sinfonia nº 7 de Shostakovich, música escrita com o sangue do coração"
▪▪
“Música de guerra: humanidade, heroísmo e propaganda por trás da Sinfonia nº 7”
Ainda que sob traumas e suspense, tudo transcorreu em paz como há muito não se via. Nenhum ataque, nenhum avião sobrevoou o teatro e suas lotadas adjacências, nada houve que pudesse interromper a comovida reverência que volitava sonoramente sobre a aura iluminada daquela noite. Embora a peça não tivesse soado tecnicamente à sua altura, o apelo emocional generalizado conferiu-lhe beleza indescritível.
TheStripRU
Os músicos se entreolharam convictos de que haviam realizado um milagre. No dia seguinte, receberam um telegrama do autor, Shostakovich parabenizando todos: “Enfim, ressuscitamos. Nossas vidas recomeçam!”.
Posteriormente, o maestro Eliasberg escreveria:
“Não cabe a mim julgar o sucesso daquele espetáculo memorável. Só posso dizer que nunca tocamos com tanta inspiração. E não há nada de surpreendente nisso: o tema patriótico e majestoso sob a sombra sinistra da invasão fez-se um soberbo réquiem em homenagem aos heróis vitimados. Quando o salão superlotado explodiu em aplausos, pareceu-me que eu estava novamente na pacífica Leningrado, que a mais brutal de todas as guerras que já ocorreram no planeta havia se acabado, que as forças da razão e do bem da humanidade haviam vencido”.
A radialista símbolo da resistência durante o cerco, Olga Berggolts, classificou a lendária execução da obra de Shostakovich como símbolo do “triunfo do homem sobre o obscurantismo”, anunciando o dia 9 de agosto de 1942, aos moradores de Leningrado, como "Dia da Vitória no meio da guerra".
Sob os ecos da Sétima Sinfonia, aos poucos a operação nazista foi arrefecendo, e as ofensivas russas tornaram-se mais bem sucedidas. Mesmo praticamente ilhada, Leningrado conseguia amenizar o bloqueio e começar a receber importantes suprimentos. Ainda sofrendo ataques e com as ações militares reduzidas em ambas as frentes, a situação da cidade mantinha-se crítica, porém insubmissa.
No início de 1944, já se evidenciava o fracasso alemão. Moscou, Kursk e Leningrado resistiam e começaram a revidar em grande ação organizada com cerca de 1 milhão de russos. Entre janeiro e março, considerável parte das tropas inimigas haviam sido expulsas.
S
ão 80 minutos de uma riqueza musical impactante, audaciosa amplitude de horizontes a evoluir de maneira surpreendentemente diversa. Tão diversa quanto virtuosos são o espírito do povo e o lugar onde foi concebida. A tessitura se adensa ao trágico, ao gláudio impugnante, a altivez, ao bravo heroísmo com a mesma fluidez que acolhe o lírico, o nostálgico, a angústia, criando um monumental e abrangente universo narrativo.Os naipes de extensa genealogia instrumental foram elencados para possibilitar o discurso típico da inconstância, da versatilidade e da oscilação emocional do contexto crítico em que a sinfonia brotou, como flor miúda que perfura a rocha, seja sob os raios de uma manhã de sol ou debaixo de trovejante tempestade. Um conjunto meticuloso de instrumentos de percussão embasa e está presente no decorrer da obra criando nuances que variam do espírito bélico à ironia, de poderosas marchas militares à poesia e às delicadezas dançantes.
A sinfonia se caracteriza principalmente pela fecundidade musical, realiza o que se propõe com inédito arrojo criativo, o que provocou tanta discussão acadêmica, filosófica, cultural, desde que foi escrita, executada, e até hoje perdura com admiração incontestável da crítica e das plateias.
Nos quatro movimentos — Allegretto, Moderato (Poco Allegretto), Adagio e Allegro Non Troppo, emergem a inconstância e a multiplicidade que costuram temas, ritmos, imagens, a legitimar reflexos da história e virtudes do povo russo na profícua trajetória artística que tão bem os representa. É difícil supor que alguma possibilidade musical haja escapado de tão ampla abrangência composicional como a Sinfonia Leningrado. Tudo nela acontece!
Logo no início do Allegreto a sinfonia é apresentada em marcante sentimento de bravura, com o caráter de coragem empunhado pela bem marcada abertura . Após a exposição introdutória, arrematada pela flauta em breves recitativos, a delicadeza se aprochega com as cordas , e depois, sob o manto dos sopros, em variações que inserem sutis fragmentos de menção ao Bolero de Ravel .
Embora defensor dos ideais socialistas, por idoneidade e princípios de justiça, Shostakovich se opunha à ditadura e ao autoritarismo. Receava que após livrar-se da opressão imperialista, seu povo seria novamente vítima da tirania, com a perversidade do stalinismo.
A sutileza da ambiguidade como artimanha irônica foi ferramenta inteligente na obra de Shostakovich, até porque o partido comunista passou a impor normas à criação artística e via em sua música traços emocionais de linguagem burguesa. Mas ele sabia compor usando as frestas do cerceamento ideológico, sem se expor claramente e sempre abrindo margens à dúvida.
De início, ele próprio nominou o episódio musical do Allegretto como Tema de Stalin, e, posteriormente de “antihitlerista”. Por fim, em declarações referiu-se à marcha como “tema do mal”, o que substancia atribuições de deboche à sua extravagante concepção.
A provocativa parte da sinfonia acirrou discussões políticas a ponto de o trabalho de Shostakovich ser proibido em 1948, como tentativa do regime fazer a música de Shostakovich desaparecer, suspeitando existir realmente pitadas de ironia a Stalin. Mas jamais foi possível abafá-la na mente e no coração dos russos. Muito menos evitar o arrebatamento das audiências onde quer que soasse. No ano seguinte, somente nos Estados Unidos, a peça foi executada mais de 60 vezes.
O Tema da Invasão é um singularíssimo capítulo da literatura musical. Shostakovich brinca de música e ritmo com invejável sagacidade sinfônica. A frase temática principal é introduzida em delicados pizzicatos, sustentada pela percussão da caixa de rufo, bem ao estilo do “Bolero” . Logo em seguida é reexposta pela flauta, pelo flautim e se transforma em diálogos graciosos , acolchoados por molejante pedal dos baixos. A amorável suavidade inicial reveste-se aos poucos de contornos marciais com a progressiva participação dos demais sopros.
Por mais repetitivas que sejam, as exposições se desenvolvem de maneira envolvente, numa sequência cumulativa simultaneamente patética, espetaculosa, até mesmo bizarra, mas de uma beleza conjuntural irresistível .
O tema prossegue a passear por toda a orquestra, dialogando entre si com as mais exóticas roupagens, cadenciado pela rica percussão, com tambores, piano, xilofone, gongo, tímpanos que vão encorpando a melodia em direção ao clímax.
Por fim, a marcha é arrematada com estrondosa opulência. Tímpanos, gongos, pratos e metais assumem em primeiro plano a grandiloquência da orquestra em tutti e coroa algo nunca visto e ouvido no mundo das sinfonias!
Após a homérica finalização da marcha, o cenário desmorona-se aos poucos e o panorama passa a descrever os nefastos estragos de uma revolução armada. O cenário sombrio do que restou, além da esperança de que os prejuízos justifiquem um futuro melhor para o povo. O suspense em ritmo retrata ecos da inexorável desgraça que se sucede às guerras.
Mas, o Sol jamais deixará de despontar no novo dia e com ele a inerente renovação do espírito de um povo forte e pronto para seguir ouve-se nos suspiros que concluem o primeiro movimento. Uma última alusão conclusiva ao Tema da Invasão é feita saudosamente ritmada pelo batuque se esvaindo em surdina, pontuado pelo piano.
Podemos dizer que a diversidade na Leningrado é o que mais a caracteriza. Um mundo temático, melódico, rítmico, que evolui amalgamado entre tragédia e lirismo, angústia e esperança, drama e poesia. Não há vestígios propriamente de alegria, como alcançados na Abertura Festiva (Opus 94), nem na saudade poética e amorosa do Andante de seu 2º Concerto para Piano e Orquestra , mas é possível se enternecer com a beleza de episódios inebriantes,
Homenagear os russos e a história de sua cidade natal com uma sinfonia já estava nos seus planos, antes do cerco alemão, mas jamais imaginou o que testemunharia, nem que seria forçado a deixá-la debaixo de bombas. Ainda assim, conseguiu compor uma obra extraordinária a ponto de levar seus conterrâneos a usá-la, em condições tão miseráveis, como arma de guerra.
A sinfonia flui estruturada sucessivamente em fácies tão imprevisíveis e variadas como os acontecimentos que a contextualizaram. Cenários antagônicos e complementares se desfiam, nascem um do outro e reproduzem a tragédia da existência com todo seu paroxismo, de angústia e plenitude. Shostakovich estruturou a obra com certa simetria geométrica, percebida tanto separadamente, em cada andamento, quanto no conjunto. No 2º e 3º movimentos, ele adota a forma A-B-C-B-A, em que dois temas emolduram um terceiro, central, repetindo-se em posições invertidas. Os dois soam como aguerridos desfiles de alma pujante e patriótica, sendo o do último movimento ainda mais intenso.
O tema cantado pelo oboé , sobreposto ao bailado, é de uma doçura restauradora. Mantém a terna atmosfera até ser surpreendido por nova intervenção conflitante , a lembrar os imprevistos. Mas logo é retomado, no oboé, flauta e por fim, calmamente, em variação no clarone . E assim se esvai o Moderato, suave como começou.
O segundo tema deste terceiro movimento é uma fascinante cançoneta protagonizada de início por uma flauta, à qual depois outra se junta para um amoroso diálogo contrapontístico. Algo de celestial que surge do bestial, como bálsamo resgatador das íntimas esperanças. Uma comprovação da ilimitada capacidade de seu autor em fazer música sob qualquer forma ou desafio. Sempre ultrapassando as fronteiras do que foi presumível se conceber na música de antes, durante e após seu tempo.
Mas, as ameaças do porvir são iminentes, e voltam nos cenários subsequentes. O bucolismo cede lugar a uma das duas épicas “cavalgadas” sinfônicas (parte central do 3º e 4º) que reafirmam a impavidez com veemência . Em ambas, o heroísmo é legitimamente patenteado. A canção das flautas retorna nas cordas, ritmada por pizzicato, com a reeditada com igual beleza para ser finalizada com a eloquência recitativa inicial. E tudo se dilui calmamente, ainda que sob a mesma expectativa de incertezas .
Arregimentam-se forças para uma das maiores conclusões sinfônicas já conhecidas até então. Shostakovich parece reunir todas as energias de sua luta ideológica, de tudo que vivera e acreditara, das imersões humanísticas de um ser dotado de assustador poder criativo. O poder da música. A música que, certa noite, calou as bombas. A música que é capaz de fazer renascer esperanças onde ninguém mais supõe que ainda existam.
1964 ▪ Shostakovich (centro dir.) reencontra o maestro Eliasberg (centro esq.) e músicos participantes do concerto de Leningrado.