Os russos são admiráveis no reconhecido empenho à arte e à cultura. Tornaram-se produtores notáveis de literatura, música, dança, filosofia, ciência, dramaturgia, pintura.
As duras vicissitudes que o destino os obrigou a enfrentar, fizeram-nos protagonistas de uma história marcada por imperiosos desafios, a começar pelo rigor de invernos tempestuosos, e por consequências da ambição, exploração, injustiças sociais, revoluções, guerras civis e militares, tragédias, fome, tudo enfrentado sem arrefecimento da coragem e da criatividade. A sobrevivência dos russos de Leningrado (São Petersburgo) ao cerco nazista que lhes foi cruelmente imposto durante quase 900 dias pode ser um dos exemplos mais emblemáticos de sua valentia. A bela e próspera cidade brilhava aos olhos de Hitler, que a cobiçava ardorosamente. A histórica tenacidade dos leningradenses em busca dos ideais socialistas que os fizeram tomar o poder da mão dos czares na revolução de 1917 tornava-a ameaçadora aos fascistas alemães. Hitler não queria invadir a cidade, mas aniquilá-la completamente. Nada satisfaria mais a sua insana ganância do que cercar a cidade, cortar todos os meios de comunicação e suprimento, isolando-a de qualquer canal de abastecimento para ver o povo morrer de fome.
Associadas à solidez de propósitos dos filhos da ex-capital do império russo, berço da revolução comunista, a pugência artístico-cultural, a força econômica e a posição estratégica no Mar Báltico acresciam mais atrativos à indomável ambição do ditador nazista. A cidade foi o centro musical do país durante os séculos 18 e 19, onde viveram e produziram compositores como Michael Glinka, Modest Mussorgsky, Nikolay Rimsky-Korsakov e Aleksandr Borodin. Isso o fazia ainda mais alucinado e determinado a dominá-la.
Cientes ou pressentidos, os russos anteviram a fúria dos alemães e finlandeses, e logo construíram várias faixas de defesa, com barricadas quilométricas. Mas nada impediu o cerco a se fechar. No início de setembro de 1941, a “Veneza do Norte”, que de São Petersburgo passara a Petrogrado, depois Leningrado, para depois ter de volta o nome que homenageia seu idealizador, o czar-imperador “Pedro, o grande”, foi cruel e inteiramente ilhada pelas forças alemãs.
A
pós um intenso ataque que perdurou por dias e noites, Hitler decidiu que as bombas não seriam as armas com as quais seu exército dizimaria Leningrado, e sim a desnutrição. Ordenou que todas as fontes de provisionamento, energia elétrica, óleo, carvão, alimentação, integração com o mundo, fossem cortadas, dando início ao diabólico “Cerco de Leningrado”, uma das mais sangrentas batalhas enfrentadas por uma grande cidade.As consequências foram catastróficas. Pouco a pouco a escassez de mantimentos, agravada com a severidade climática, a vigiada abstração das regiões limítrofes forçavam a imposição de racionamento progressivo de todos os gêneros alimentícios. A situação piorava dramaticamente sem perspectiva alguma.
Toda a inventividade plausível foi posta à prova. Lagos congelados serviram de vias de tráfego em busca da vida, entre campos e parques onde ainda havia algum alimento. Tudo se fazia comestível, de aves e minhocas a raízes e cascas de árvores.
Fábricas fecharam, não havia mais eletricidade, carvão, combustível e a saída foi começar a cortar as árvores dos parques para gerar energia. Com os alimentos se reduzindo, a desnutrição aumentava e a população já morria de fome e, segundo registros, chegou a comer cadáveres que o gelo das ruas conservava, sem condições de serem sepultados.
Os bombardeios continuavam implacavelmente ordenados por Hitler, a quem os chefes militares já recomendavam parar, acreditando no irreversível domínio da enfraquecida São Petersburgo. Mas o nazista intuía negativamente, ciente da impressionante força daqueles cidadãos, a sobreviver com tamanha resistência. Ele tinha noção de que lidava com gente sensível, próspera, coesa, evoluída em muitos aspectos. Um povo que representa o mundo em exímia inventividade nas vertentes mais expressivas. No balé, no teatro, pintura, romance, arquitetura, filosofia, ciência, era difícil encontrar algum segmento no qual inexistisse uma marca dos russos. Isso amedontrava Hitler! Sobretudo o espírito austero e indomável sob o qual se postaram, como na revolução de 17, desbancando a tirania imperialista em busca de independência e justiça.
N
esse trágico cenário de inanição, com bombardeios constantes, corpos espalhados pela cidade sem direito a sepultamento, grande carestia, um dos célebres personagens da cidade trabalhava com afinco em uma nova obra: o músico Dmitri Shostakovich. Ele era diretor do Conservatório de São Petersburgo, onde corajosamente se confinava para continuar a escrever, à luz de candeeiros, a sua sétima sinfonia, intitulada “Leningrado”, em homenagem à cidade natal.A situação sem perspectivas era sombria, sob permanente iminência de ataques e o funesto fartum a soprar de todos os cantos. O cerco se fechava diuturnamente, sufocando, mutilando e exaurindo um povo que só contava com a energia admirável da própria resistência. Mesmo assim, com a cidade assolada, imersa nos horrores da guerra, Shostakovich nutria o sonho de ver a sétima executada pela Filarmônica de Leningrado e afirmava com coragem:
“Nem os ataques selvagens, os aviões alemães, nem a lúgubre homosfera da cidade sitiada conseguem impedir o fluxo do que ora estou a criar. Trabalho com uma intensidade desumana que nunca havia alcançado antes”.
Mas, não foi possível. Por ordem oficial, os membros do governo, o compositor e toda a orquestra foram obrigados a evacuar, transferindo-se para as cidades de Samara (Kuibyshev), capital temporária às margens do Volga e Novosibirsk (Nova Sibéria), onde concluiu a sinfonia, em dezembro de 1941.Agora era tratar de apresentá-la, ainda que o clima de guerra só se agravasse, com danos crescentes. Mais uma vez, imbuído do latente idealismo, sensibilizou músicos que se aliaram à beleza da ousada criação, da iniciativa, e começou os ensaios que culminaram com a estreia em Samara, no dia 5 de março de 1942, pela Orquestra do Teatro Bolshoi, que para lá também havia sido evacuada, sob a regência de Samuil Samosud, um georgiano de Tbilisi.
Entretanto, a energia e a obstinação de Shostakovich em divulgar a Sétima para o mundo estavam apenas começando. Com ajuda de influentes contatos, conseguiu a microfilmagem da partitura e seu escoamento para outros países, via Teerã. Assim, foi executada com transmissão da BBC, pela Orquestra Filarmônica de Londres, dirigida pelo maestro Henry Wood, em 22 de junho do mesmo ano. Em seguida, foi apresentada em um concerto do secular festival “The Proms”, no Royal Albert Hall, também em Londres, no dia 29 de junho. O lançamento norte-americano aconteceu em Nova York, 19 de julho de 1942, pela Orquestra Sinfônica da NBC dirigida por Arturo Toscanini, aclamado regente italiano.
A
essa altura a Sinfonia Leningrado era notícia corrente no meio artístico, popular, político, militar, dentro e fora da Rússia, atraindo muita curiosidade. E São Petersburgo sucumbia sob lastimáveis condições de sobrevivência… Contudo, a resistência surpreendia e parecia incentivar o inimigo a intensificar o combate. Hitler não desistia. De um lado, as armas, a ambição, a monstruosa estratégia de isolamento. Do outro, a briosa intrepidez de um espírito notavelmente criador, dono de coração movido por patriotismo pulsante de liberdade.Mais uma vez se valeu da motriz solidária dos conterrâneos, loucos por música, irmanados pelo sofrimento, e cooptou forças capazes de fazer chegar a Leningrado a partitura soberbamente orquestrada, de quase 80 minutos. Um corajoso tenente, piloto de 20 anos que transportava remédios e socorros médicos às áreas atingidas, cruzou os céus da cidade, perfurou o anel de fogo, arriscando sua vida para levar à devastada capital os 4 volumes de uma sinfonia que já fazia história. A partitura era esperada no aeroporto, em sigilo, e de lá seguiu transportada como um tesouro a ser entregue ao violinista Karl Eliasberg, regente titular da Orquestra Sinfônica da Rádio de Leningrado, o único grupo musical ainda na cidade. Ao folhear algumas das 300 páginas, o maestro empalideceu. A peça era grandiosa demais, requeria mais de 100 músicos, quantidade duplicada de metais, muitos instrumentos de percussão, além de órgão e piano. Mas nem isso o desanimou.
M
esmo com atividades encerradas há meses e parte dos músicos falecidos, os diretores do Departamento de Artes da Cidade de Leningrado, certos do apoio dos remanescentes, anunciaram os ensaios da orquestra para executar a sinfonia pela primeira vez na terra natal de seu autor. No dia seguinte, o jornal Pravda anunciava:
“A partitura da Sétima Sinfonia de Dmitry Shostakovich foi entregue a Leningrado de avião. Sua apresentação pública acontecerá no Grande Salão da Filarmônica".
O primeiro desafio de Eliasberg foi localizar os músicos, abatidos como toda a cidade, afundada em penúria. E mesmo igualmente debilitado, saiu "cambaleando" à cata do que podia, confiante no tradicional compromisso artístico e no espírito de resistência de seus conterrâneos. Procurou por todos os lugares, de casa em casa, pelos hospitais, e se chocava com a situação. Muitos foram encontrados em apartamentos insalubres, escuros, acabrunhados, desenganados. Entretanto, com a alma musical viva e em chamas, seus olhares brilhavam perante o chamamento do maestro. Um dos organizadores do evento pronunciou-se:
"Meu Deus, quão magros eles estavam! Como essas pessoas se animaram quando começamos a tirá-los dos lúgubres espaços que habitavam. Choramos quando eles trouxeram suas roupas de concerto e os instrumentos para os ensaios que começaram no estúdio coberto de gelo".
Embora desnutridos, doentes, praticamente incapazes, cerca de 30 instrumentistas milagrosamente se dispuseram aos difíceis encontros iniciados no salão da Filarmônica. Previsto para durar 3 horas, o primeiro ensaio não passou de 15 minutos, em virtude da fraqueza, dos desmaios, sobretudo dos músicos de sopro, sem o fôlego de outrora.Como medida de estímulo, as estações de rádio voltaram a difundir música e a população alquebrada pouco a pouco se associava à causa. A performance sinfônica se tornara um dever cívico. Alimentação e transporte extras aos mais necessitados foram providenciados e já se percebia novo alento na tétrica cena urbana.
O
s ensaios ocorreram sob comovente empenho e as circunstâncias dolorosas pareciam estimular à concretização de um objetivo já encarnado em todos. Os ânimos oscilavam perante o frio, a complexidade da obra e a notícia de que três músicos haviam falecido com o agravamento da saúde cada vez mais precária. Cenários de fome e desespero eram flagrados cotidianamente em todos os recantos, ruas vazias,
comércio fechado, racionamento crescente dos recursos, ataques aéreos, e, ainda assim, a música era capaz de oferecer alguma esperança à sitiada urbe. Os habitantes novamente chancelavam a reputação a si creditada pela consagrada altivez, reforçando a identidade artística principalmente por manter rádios e teatros funcionando em tão penosas circunstâncias.Relatos posteriores referiram-se ao assombroso entusiasmo como ânsia de demonstrar que São Petersburgo, embora morrendo, estava viva, e o desejo de que a sinfonia soasse aos píncaros só crescia. Afinal, Moscou, Tashkent, Novosibirsk, Kuibyshev, Nova York, Londres, Estocolmo, já lhe haviam assistido, mas o local onde a obra e o autor nasceram, ainda não. Viam nesta ideia uma merecida forma de homenagear um de seus filhos ilustres, Dmitri Shostakovich.
A preparação continuou em conjuntura inimaginável. Os músicos tinham os instrumentos defeituosos, estavam fracos pela fome, mas com ajuda da comunidade conseguiam atrair instrumentistas de bandas musicais civis e militares para aumentar a orquestra e a duração dos ensaios, frequentemente interrompidos por ataques aéreos, com bombas caindo em frente ao teatro.
Inacreditavelmente uma aura de obstinação e idealismo pairava sobre esta obscura atmosfera, como feixes de luz a penetrar por nuvens de longa e densa tempestade. Aproximava-se a data da estreia e a notícia gerou ânimo quando foram dispostos cartazes em pontos estratégicos.
E
nfim a estreia! Marcado por insólita coincidência, Hitler havia predefinido o 9 de agosto de 1942 como a data da queda de Leningrado. Chegou a determinar que fossem impressos e distribuídos convites para requintado jantar em homenagem à tomada completa da cidade no luxuoso Hotel Astoria, construído em 1912 para a celebração de 300 anos do governo imperial russo. Mas até o exército nazista se espantou com o que ali aconteceu.Na data da estreia, um dos chefes do exército soviéico ordenou bombardeios dirigidos às proximidades das bases alemães, comunicando em seguida pelo rádio que naquela noite, enquanto soasse a sinfonia, nenhuma bomba deveria ser atirada perto do teatro. Em seguida liberou todos os soldados para o concerto.
Às 18h00, as estações de rádio divulgaram uma gravação do maestro Karl Eliasberg anunciando à população:
“Um grande acontecimento na história cultural da nossa cidade acontecerá em alguns minutos. Vocês escutarão pela primeira vez a Sinfonia nº 7 do nosso notável compatriota Dmitri Shostakovich. Ele escreveu esta composição na nossa cidade enquanto o inimigo tentava insanamente entrar. Enquanto os porcos fascistas atacavam o continente e toda a Europa acreditava que Leningrado havia sucumbido, hoje daremos testemunho do nosso espírito, coragem e prontidão para lutar. Ouçam, Camaradas!”.
Não havia transportes, e as pessoas, com bastante antecedência, surgiam de todas as ruas caminhando em direção ao Grande Salão da Filarmônica, onde aconteceria o memorável concerto. Líderes políticos, ministros, militares, civis, artistas, bailarinos, escritores, entusiastas, todos se mesclaram à frente do edifício, entraram e se acomodaram até lotar o auditório. Os que chegaram depois distribuíram-se pelas escadas, corredores, galerias, e, lá fora, aglomeraram-se em frente às janelas. Porém, não era apenas ali que a Sétima Sinfonia seria ouvida. Em vários pontos da cidade, até os limites do cerco, foram instalados alto-falantes para sua ampla transmissão, além dos canais radiofônicos.Com os canhões calados, a plateia silencia. Os músicos, pouco a pouco, tomaram seus assentos causando impacto a quem não os via há tempo. Alguns vestiram mais roupa que o necessário para esconder a magreza.
Tudo pronto, entra o maestro Karl Eilasberg, o auditório levanta-se em aplausos que se ouviam de todos os lugares, inclusive da rua. Ele agradece, ergue a batuta e a Sinfonia começa. A emoção era tão intensa, suplantou as deficiências musicais evidenciadas pela conhecida precariedade e era evidente nas lágrimas de muitos olhares. Posteriormente se refeririam à obra como a “biografia musicada de uma Leningrado sofredora”.
H
á 5 anos, Olga Kvade, jovem leningradense que estava na plateia, hoje com cerca de 90 anos, prestou um comovente depoimento em documentário da BBC:
“No verão de 1942, um concerto notável aconteceu em Leningrado. Enquanto a cidade estava cercada pelas forças alemãs, uma orquestra de músicos famintos apresentou a sétima sinfonia recém-escrita de Shostakovich. Os lustres estavam brilhando. Era uma sensação tão estranha. Por um lado, era inacreditável — o bloqueio, enterros, mortes, fome, e a Sala da Filarmônica cheia — simplesmente incrível".
A escritora, Alissa Mann, laureada pela Universidade de Sheffield, com especialização em História e Linguística russa, assim descreveu o evento:
“Um conjunto inconcebível de músicos esfomeados, um compositor desgraçado e a resiliência da alma humana [...] Vivendo em Leningrado e constantemente confrontado com a selvageria da guerra, o compositor Dmitri Shostakovich traduziu o horror que viu em uma sinfonia que contaria a história de sofrimento, desespero, perseverança e esperança, sua e dos cidadãos, para o resto do mundo”.
Muitas outras manchetes epigrafaram matérias, ensaios e estudos, enaltecendo o feito:
"Leningrado e a Orquestra que desafiou Hitler”
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“Leningrado: cerco e sinfonia: a história da grande cidade aterrorizada por Stalin, faminta por Hitler, imortalizada por Shostakovich”
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“Sinfonia nº 7 de Shostakovich, música escrita com o sangue do coração"
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“Música de guerra: humanidade, heroísmo e propaganda por trás da Sinfonia nº 7”
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“Leningrado: cerco e sinfonia: a história da grande cidade aterrorizada por Stalin, faminta por Hitler, imortalizada por Shostakovich”
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“Sinfonia nº 7 de Shostakovich, música escrita com o sangue do coração"
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“Música de guerra: humanidade, heroísmo e propaganda por trás da Sinfonia nº 7”
Ainda que sob traumas e suspense, tudo transcorreu em paz como há muito não se via. Nenhum ataque, nenhum avião sobrevoou o teatro e suas lotadas adjacências, nada houve que pudesse interromper a comovida reverência que volitava sonoramente sobre a aura iluminada daquela noite. Embora a peça não tivesse soado tecnicamente à sua altura, o apelo emocional generalizado conferiu-lhe beleza indescritível.
No final, houve meia hora de ovação da plateia e nos corredores as pessoas se abraçaram emocionadas. Do meio do povo, surgiu uma garota de repente com um ramo de flores frescas para o regente.
Os músicos se entreolharam convictos de que haviam realizado um milagre. No dia seguinte, receberam um telegrama do autor, Shostakovich parabenizando todos: “Enfim, ressuscitamos. Nossas vidas recomeçam!”.
Posteriormente, o maestro Eliasberg escreveria:
“Não cabe a mim julgar o sucesso daquele espetáculo memorável. Só posso dizer que nunca tocamos com tanta inspiração. E não há nada de surpreendente nisso: o tema patriótico e majestoso sob a sombra sinistra da invasão fez-se um soberbo réquiem em homenagem aos heróis vitimados. Quando o salão superlotado explodiu em aplausos, pareceu-me que eu estava novamente na pacífica Leningrado, que a mais brutal de todas as guerras que já ocorreram no planeta havia se acabado, que as forças da razão e do bem da humanidade haviam vencido”.
As razões de Eliasberg eram inegavelmente justas ao se referir ao concerto como “vitória”. O esforço coletivo havia-se consolidado como exitosa estratégia de ataque psico-emocional, expandida nos altofalantes espalhados pela cidade, por meio dos quais a música alcançou até as forças alemães. Segundo relataram depois ao próprio maestro, alguns soldados posicionados nos limites do cerco ficaram tão impressionados com o que ouviam, a ponto de exclamarem entre si: "Que gente altruísta é esta que estamos bombardeando? Isto é uma sinfonia de heróis. Jamais dominaremos esse povo admirável”. Um povo que eles supunham praticamente já dizimado e sem nenhuma condições de reagir.Mas ali se tratava de outro tipo de resistência, era brio moral, entusiasmo, estóica identidade artística que caracterizava uma espécie de formação espiritual genésica. A performance se perpetua referenciada por estudiosos, críticos e historiadores como “acontecimento lendário, prelúdio da vitória real sobre os alemães". Feito que rendeu ao condutor Karl Eliasberg a comenda “Ordem da Estrela Vermelha”, outorgada exclusivamente a militares soviéticos por "serviços excepcionais em prol da defesa da União Soviética”.
A radialista símbolo da resistência durante o cerco, Olga Berggolts, classificou a lendária execução da obra de Shostakovich como símbolo do “triunfo do homem sobre o obscurantismo”, anunciando o dia 9 de agosto de 1942, aos moradores de Leningrado, como "Dia da Vitória no meio da guerra".
Sob os ecos da Sétima Sinfonia, aos poucos a operação nazista foi arrefecendo, e as ofensivas russas tornaram-se mais bem sucedidas. Mesmo praticamente ilhada, Leningrado conseguia amenizar o bloqueio e começar a receber importantes suprimentos. Ainda sofrendo ataques e com as ações militares reduzidas em ambas as frentes, a situação da cidade mantinha-se crítica, porém insubmissa.
No início de 1944, já se evidenciava o fracasso alemão. Moscou, Kursk e Leningrado resistiam e começaram a revidar em grande ação organizada com cerca de 1 milhão de russos. Entre janeiro e março, considerável parte das tropas inimigas haviam sido expulsas.
O maestro Eliasberg fazia coro com a opinião geral: "a cidade reencontrara sua humanidade”. Para ele, a execução da sinfonia premeditara o “triunfo sobre a desalmada máquina de guerra dos fascistas” e a obra se imortalizaria na história da União Soviética. Assim aconteceu, com crescente popularidade repercutida mundialmente nos meios de comunicação, em atividades culturais, novas apresentações, livros, romances, filmes e até um pequeno museu na atual São Petersburgo, inspirados na formidável performance em que a música demonstrou poder até então imponderável.
S
ão 80 minutos de uma riqueza musical impactante, audaciosa amplitude de horizontes a evoluir de maneira surpreendentemente diversa. Tão diversa quanto virtuosos são o espírito do povo e o lugar onde foi concebida. A tessitura se adensa ao trágico, ao gláudio impugnante, a altivez, ao bravo heroísmo com a mesma fluidez que acolhe o lírico, o nostálgico, a angústia, criando um monumental e abrangente universo narrativo.Os naipes de extensa genealogia instrumental foram elencados para possibilitar o discurso típico da inconstância, da versatilidade e da oscilação emocional do contexto crítico em que a sinfonia brotou, como flor miúda que perfura a rocha, seja sob os raios de uma manhã de sol ou debaixo de trovejante tempestade. Um conjunto meticuloso de instrumentos de percussão embasa e está presente no decorrer da obra criando nuances que variam do espírito bélico à ironia, de poderosas marchas militares à poesia e às delicadezas dançantes.
A sinfonia se caracteriza principalmente pela fecundidade musical, realiza o que se propõe com inédito arrojo criativo, o que provocou tanta discussão acadêmica, filosófica, cultural, desde que foi escrita, executada, e até hoje perdura com admiração incontestável da crítica e das plateias.
Nos quatro movimentos — Allegretto, Moderato (Poco Allegretto), Adagio e Allegro Non Troppo, emergem a inconstância e a multiplicidade que costuram temas, ritmos, imagens, a legitimar reflexos da história e virtudes do povo russo na profícua trajetória artística que tão bem os representa. É difícil supor que alguma possibilidade musical haja escapado de tão ampla abrangência composicional como a Sinfonia Leningrado. Tudo nela acontece!
Logo no início do Allegreto a sinfonia é apresentada em marcante sentimento de bravura, com o caráter de coragem empunhado pela bem marcada abertura . Após a exposição introdutória, arrematada pela flauta em breves recitativos, a delicadeza se aprochega com as cordas , e depois, sob o manto dos sopros, em variações que inserem sutis fragmentos de menção ao Bolero de Ravel .
Tal referência surpreende e suscita elucubrações acerca dos motivos que teriam levado Shostakovich à moderna e imaginativa reedição da peça cuja popularização espantou o próprio autor, Maurice Ravel. Haveria sido uma associação em homenagem ao destemor revolucionário que caracteriza o povo francês; uma sintonia com o balé, ou a utilização da ideia em nova roupagem para condecorar com firmeza os ideais socialistas, no trecho da sinfonia que se consagrou como “Marcha de Stalin” Igualmente conhecido como “Tema da Invasão”, o compositor Bella Bartok o descreveu como “melodia simples que percorre centenas de compassos, tornando-se mais brutal, desmiolada e aterrorizante a cada repetição”.
Embora defensor dos ideais socialistas, por idoneidade e princípios de justiça, Shostakovich se opunha à ditadura e ao autoritarismo. Receava que após livrar-se da opressão imperialista, seu povo seria novamente vítima da tirania, com a perversidade do stalinismo. A referência ao nome de Stalin no afamado trecho do primeiro movimento teria sido estratégia ambígua para reforçar a independência da União Soviética conquistada pela revolução, em contraponto com os danos causados na tomada do poder e a subsequente deturpação que transformou os legítimos objetivos do socialismo em trágica fantasmagoria.
A sutileza da ambiguidade como artimanha irônica foi ferramenta inteligente na obra de Shostakovich, até porque o partido comunista passou a impor normas à criação artística e via em sua música traços emocionais de linguagem burguesa. Mas ele sabia compor usando as frestas do cerceamento ideológico, sem se expor claramente e sempre abrindo margens à dúvida.
De início, ele próprio nominou o episódio musical do Allegretto como Tema de Stalin, e, posteriormente de “antihitlerista”. Por fim, em declarações referiu-se à marcha como “tema do mal”, o que substancia atribuições de deboche à sua extravagante concepção.
A provocativa parte da sinfonia acirrou discussões políticas a ponto de o trabalho de Shostakovich ser proibido em 1948, como tentativa do regime fazer a música de Shostakovich desaparecer, suspeitando existir realmente pitadas de ironia a Stalin. Mas jamais foi possível abafá-la na mente e no coração dos russos. Muito menos evitar o arrebatamento das audiências onde quer que soasse. No ano seguinte, somente nos Estados Unidos, a peça foi executada mais de 60 vezes.
Shostakovich revelava, pessoal e musicalmente, suas convicções em defesa da justiça social e do respeito à revolução de 1917, que veio corrigir a truculenta exploração do povo russo durante o impiedoso domínio czarista. Embora os limites de tal anagogia se restrinjam à libertação e ao sonho de independência, jamais à subsequente crueldade do regime stalinista. Por isso algumas análises identificaram certo teor de ironia nos jocosos contornos melódicos da “bolerizada” Marcha de Stalin, pois era sabido que, na intimidade, o músico lamentava que o país tivesse se libertado de um poder tirano para ser substituído por outro igualmente criminoso.
O Tema da Invasão é um singularíssimo capítulo da literatura musical. Shostakovich brinca de música e ritmo com invejável sagacidade sinfônica. A frase temática principal é introduzida em delicados pizzicatos, sustentada pela percussão da caixa de rufo, bem ao estilo do “Bolero” . Logo em seguida é reexposta pela flauta, pelo flautim e se transforma em diálogos graciosos , acolchoados por molejante pedal dos baixos. A amorável suavidade inicial reveste-se aos poucos de contornos marciais com a progressiva participação dos demais sopros.
O destemor emerge em ritmo mais contundente à entrada do piano, ao qual se juntam os metais, já com ares de passeata, agora bem pontuada pelo xilofone e beliscar das cordas graves .
Por mais repetitivas que sejam, as exposições se desenvolvem de maneira envolvente, numa sequência cumulativa simultaneamente patética, espetaculosa, até mesmo bizarra, mas de uma beleza conjuntural irresistível .
O tema prossegue a passear por toda a orquestra, dialogando entre si com as mais exóticas roupagens, cadenciado pela rica percussão, com tambores, piano, xilofone, gongo, tímpanos que vão encorpando a melodia em direção ao clímax. A polifonia surge em camadas sobrepostas com incrível harmonia de timbres e dissonâncias cativantes que se engrandecem assustadoramente .
Por fim, a marcha é arrematada com estrondosa opulência. Tímpanos, gongos, pratos e metais assumem em primeiro plano a grandiloquência da orquestra em tutti e coroa algo nunca visto e ouvido no mundo das sinfonias!
Após a homérica finalização da marcha, o cenário desmorona-se aos poucos e o panorama passa a descrever os nefastos estragos de uma revolução armada. O cenário sombrio do que restou, além da esperança de que os prejuízos justifiquem um futuro melhor para o povo. O suspense em ritmo retrata ecos da inexorável desgraça que se sucede às guerras.
Mas, o Sol jamais deixará de despontar no novo dia e com ele a inerente renovação do espírito de um povo forte e pronto para seguir ouve-se nos suspiros que concluem o primeiro movimento. Uma última alusão conclusiva ao Tema da Invasão é feita saudosamente ritmada pelo batuque se esvaindo em surdina, pontuado pelo piano.
Podemos dizer que a diversidade na Leningrado é o que mais a caracteriza. Um mundo temático, melódico, rítmico, que evolui amalgamado entre tragédia e lirismo, angústia e esperança, drama e poesia. Não há vestígios propriamente de alegria, como alcançados na Abertura Festiva (Opus 94), nem na saudade poética e amorosa do Andante de seu 2º Concerto para Piano e Orquestra , mas é possível se enternecer com a beleza de episódios inebriantes, nos quais algo de sublime paira acima de toda a desventura contextual. A multiplicidade de cores é notória em Shostakovich, compositor que esgotou o que havia de palpável na estética musical, muito além de seu tempo. E é isto que ele busca aqui: retratar tudo o que a guerra é capaz de provocar na humanidade quando esta deixa de ser humana.
Homenagear os russos e a história de sua cidade natal com uma sinfonia já estava nos seus planos, antes do cerco alemão, mas jamais imaginou o que testemunharia, nem que seria forçado a deixá-la debaixo de bombas. Ainda assim, conseguiu compor uma obra extraordinária a ponto de levar seus conterrâneos a usá-la, em condições tão miseráveis, como arma de guerra.
A sinfonia flui estruturada sucessivamente em fácies tão imprevisíveis e variadas como os acontecimentos que a contextualizaram. Cenários antagônicos e complementares se desfiam, nascem um do outro e reproduzem a tragédia da existência com todo seu paroxismo, de angústia e plenitude. Shostakovich estruturou a obra com certa simetria geométrica, percebida tanto separadamente, em cada andamento, quanto no conjunto. No 2º e 3º movimentos, ele adota a forma A-B-C-B-A, em que dois temas emolduram um terceiro, central, repetindo-se em posições invertidas. Os dois soam como aguerridos desfiles de alma pujante e patriótica, sendo o do último movimento ainda mais intenso.
A dança pontua os magníficos balés da história russa, uma seara em que Shostakovich criou célebres peças. O segundo movimento (Moderato) inicia-se graciosamente dançante, como a encenar um rosário de bailarinas em delicadas pontas de pé. Um clima bem diferente do que se desenvolveu no andamento anterior. Em uma honra dedicada ao povo e lugar onde nasceu não poderiam faltar a donaire que bem reflete a amplitude de sua ligação com a Arte. Como se percebe nas coloridas sequências que se modulam habilmente sem rupturas nem interstícios que fragmentem a unidade do lauto contexto de significados.
O tema cantado pelo oboé , sobreposto ao bailado, é de uma doçura restauradora. Mantém a terna atmosfera até ser surpreendido por nova intervenção conflitante , a lembrar os imprevistos. Mas logo é retomado, no oboé, flauta e por fim, calmamente, em variação no clarone . E assim se esvai o Moderato, suave como começou.
O adagio (terceira parte) inaugura-se dramático e retoma com veemência os sofridos infortúnios . Estas mutações bruscas e transitórias espelham fidedignamente os imprevistos diante da situação que a cidade enfrentava à época em que foi composta. Imerso em medo, melancolia, dificuldades extremas para viver, pensar, sobreviver, enfim, Shostakovich demonstra vigor criativo incomensurável, sem ideia do que aconteceria. Forçado a abandonar tudo e se refugiar em outra cidade, ele continua a escrever sua sinfonia sem jamais imaginar o que ela representaria para a história da Rússia e do mundo. Apesar de toda a vulnerabilidade física e espiritual, ele encontra inspiração sublime para temas diversos, de caráter doce e lírico à mais trágica e aterrorizante ideia.
O segundo tema deste terceiro movimento é uma fascinante cançoneta protagonizada de início por uma flauta, à qual depois outra se junta para um amoroso diálogo contrapontístico. Algo de celestial que surge do bestial, como bálsamo resgatador das íntimas esperanças. Uma comprovação da ilimitada capacidade de seu autor em fazer música sob qualquer forma ou desafio. Sempre ultrapassando as fronteiras do que foi presumível se conceber na música de antes, durante e após seu tempo.
Mas, as ameaças do porvir são iminentes, e voltam nos cenários subsequentes. O bucolismo cede lugar a uma das duas épicas “cavalgadas” sinfônicas (parte central do 3º e 4º) que reafirmam a impavidez com veemência . Em ambas, o heroísmo é legitimamente patenteado. A canção das flautas retorna nas cordas, ritmada por pizzicato, com a reeditada com igual beleza para ser finalizada com a eloquência recitativa inicial. E tudo se dilui calmamente, ainda que sob a mesma expectativa de incertezas .
Soa o gongo soa e então surge, sombrio e grandioso , o Allegro Non Troppo, para o solene coroamento da Sinfonia Leningrado. Imagino o que sentiu a assustada e padecida plateia, o povo nas ruas e os soldados alemães diante da monumental sonoridade Após se anunciar penumbroso, lança-se revoluto, agitando-se sob o suspense que cresce a construir a voluptuosa cavalgada final, com ritmo epopeico alucinante. Os metais gritam e se mesclam em meio a sentimentos de fúria e vitória, sucedida por interlúdio de citações que preparam o arremate.
Arregimentam-se forças para uma das maiores conclusões sinfônicas já conhecidas até então. Shostakovich parece reunir todas as energias de sua luta ideológica, de tudo que vivera e acreditara, das imersões humanísticas de um ser dotado de assustador poder criativo. O poder da música. A música que, certa noite, calou as bombas. A música que é capaz de fazer renascer esperanças onde ninguém mais supõe que ainda existam.