Quando, em 1970 - fui transferido pelo Banco do Brasil, da agência de Pombal – onde trabalhara por sete anos – para a do Varadouro, a única em João Pessoa, na época, estava falido. Investira casa, caminhão, o que tinha e o que não tinha no filme O Salário da Morte e perdera tudo. Dando meus expedientes de oito horas no banco, a necessidade de continuar a produzir arte era imperiosa e busquei uma sem custo. Danei-me a criar poemas. Quando tinha uns quarenta, me perguntei “A quem isso pode interessar?” – e botei o livro na gaveta, passando a elaborar o romance “Israel Rêmora”. Lá pelas tantas, no entanto, percebi que os poemas engavetados tinham muito a ver com a prosa que estava fazendo. Foi então que a experiência do cinema me valeu: com tesoura e fita adesiva, passei a literalmente montar os textos em prosa àquela série de versos, que passaram – sem que eu precisasse dizer isso – a ser monólogos interiores de meu protagonista. Como se a cada capítulo narrado por mim, já houvesse um “comentário” do personagem a respeito. Funcionou. Ganhei o Prêmio Fernando Chinaglia com o resultado e o livro saiu pela Record em 75.
"Meu Deus!
Preciso me libertar do esboço em que estou esbatido e apagado entre linhas certas e incertas e borrões.
Preciso me libertar do mármore em que me sinto preso dentro
Inacabado.
Mas é que... sou uma espécie de anjo caído
resíduo pregado no fundo da gravitação
traído
e que só se permite contemplar o Cristo sorrindo
leve e limpo
subindo
deixando-me embaixo
entre o peso das pedras
da tumba
e dos soldados.
E eu preciso me libertar do emaranhado de fios
da rocha bruta
e da gravitação pesada
para também saltar.
E eu preciso me libertar e saltar
Mesmo sabendo que
como um bailarino
serei devolvido ao chão
depois da pirueta
pela mesma força irreversível que atrai o futuro para o fundo da ampulheta.
Mas eu preciso!
Confesso que
às vezes
eu me sinto como que envolvido num clima de sombras e névoas
numa luminosidade trágica
pregado ao largo no madeiro
com as omoplatas abertas
a cabeça caída como um peso morto sobre o peito e fremindo endurecida ao vento
meus cabelos e panos se agitando em torno do que foram meus sentidos.
Confesso que
às vezes
eu me sinto sendo levado com choro e passos para a cova
dentro de um lençol
minhas mãos balançando-se rijas e brancas
fora dele
eu de olhos fechados
pesado
anestesiado.
Confesso que
às vezes
eu me sinto como se já tivesse passado por tudo.
Oh céus.
Veja como eram louros meus cabelos
e como meus soldadinhos de chumbo ainda tinham a esgrima dentro da bainha
como eu já andava com a espada dentro da bainha.
E veja minha fé
cálida e fininha
de uma simplicidade suntuosa e delicada
cheia de minúsculas anunciações com asas iridiscentes em fundos de ouro
cheia de virgens de auréolas filigranadas e véus transcaríssimos.
Era a minha fé:
fácil
sem peso nem profundidade
linda
como meu sono depois
sobre coloridas histórias em quadrinhos!
Mas meu avô me mostrou num museu um monstro esculpido da dinastia de Han
e me fez entender que aquilo não representava um animal
mas a fera que havia nele.
Despertou em mim as agulhas
mesquitas
minaretes aflitos
de uma rebuscada arquitetura interior
e foi quando a ânsia pelo conhecimento da essência das coisas começou
e começou a minha solidão.
Foi quando vi o mar e a rocha se encontrando com o estrondo de vagões se engatando
mas se desengatando sempre:
as coisas adultas
e quanto vi Atenas:
meu mundo quebrado.
Foi quando ingressei na engrenagem que tritura na parede o segmento de reta que vem de Alfa e vai a Ômega
onde as rodas denteadas da moenda esmagaram e esbagaçaram meu futuro e meu presente
deixando atrás de mim uma trilha de perspectivas destruídas
para sempre irrecuperáveis.
Foi quando comecei a me sentir insignificante e latente
andando anônimo na rua
como um Billy Batson ou Clark Kent.
Um gênio poderoso sem a coragem suficiente para gritar na rua uma palavra mágica e cabalística
que libertaria de mim os poderes dos deuses
semideuses e
heróis.
Um gênio sem a coragem de desatar o nó górdio da gravata
desabotoar o colarinho
e
nu
encontrar em mim o super-homem de aço e perfeito que sempre sonhei ser
senhor de meus próprios caminhos.
Meu avô me disse que o Sol foi adorado como um deus imaculado... até que nele também se descobriram manchas.
E que a Terra teria vindo dele há muito tempo
trazendo consigo
em estado latente
nossa indústria pesada e o esoterismo
nossas guerras
pestes
crimes
o ateísmo
cristianismo
estas três palavras
e o último assassinato que vi na imprensa.
E penso que talvez a Terra tenha saído justamente de uma daquelas manchas solares
que a roseira arranca do chão e expurga em explosões de espinhos e de espinhos
até conseguir a pureza de suas rosas brancas
e rosas.
Talvez sejam esses Cristos
sangrentos
cuspidos
com as cabeças enroladas de espinhos
que eu vejo em minha casa e em todas as igrejas
nossos retratos de Dorian Gray
realmente “carregando nossas iniqüi dades e sendo esmagados por nossos crimes”.
Agora eu olho o Sol e penso em quantos
pelo sentimento de culpa se afligem.
e que talvez sejam esses Cristos suas roseiras mentais tentando expurgar suas manchas de origem.
NOTA
Do livro "Israel Rêmora ou o Sacrifício das Fêmeas", Editora Record 1974, Prêmio Fernando Chinaglia
Do livro "Israel Rêmora ou o Sacrifício das Fêmeas", Editora Record 1974, Prêmio Fernando Chinaglia