Sabemos que existem duas línguas: a do povo e a dos gramáticos. Quase nunca coincidem, nem mesmo em Portugal, onde até as pessoas mais simples parecem falar um português corretíssimo. Digo parecem porque não tenho certeza e também porque é provável que lá também – e mesmo nos países desenvolvidos e cultos - coexistam as duas línguas referidas. Manuel Bandeira, no poema Evocação do Recife, que consta do seu livro Libertinagem, já nos chamava a atenção para essa dualidade nos versos “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/ Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo/ Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/ Ao passo que nós/ O que fazemos/ É macaquear/ A sintaxe lusíada”. Veja só.
Língua errada do povo, língua certa do povo. Sim, porque o povo fala errado e certo ao mesmo tempo, como bem sabemos, nós que escrevemos, tentando, nem sempre com êxito, conciliar o errado e o certo do povo com a ortodoxia dos gramáticos. Mas não é fácil. Principalmente na prosa. E nos jornais. Nestes, é de rigor observar-se a gramática e para isso existem até os famosos manuais de redação, espécie de código de leis redacionais, onde a “língua errada do povo” dificilmente encontra guarida, salvo, às vezes, quando já absorvida e referendada pelos cultos. Esse fenômeno ocorre muito com as gírias – ou com algumas delas -, as quais só lentamente, muito devagar, vão conquistando domicílio nos dicionários, adquirindo, assim, cidadania linguística.
Ah, os dicionários. Para alguns mais radicais, constituem os mausoléus da língua, como se fosse possível passarmos apenas com a língua viva das ruas, aquela de que falou gostosamente Bandeira, a língua errada/certa do povo. Sobre isso, penso que nem tanto nem tão pouco, o meio-termo virtuoso de que falou Aristóteles. Pois deveria a língua descer totalmente - e exclusivamente – ao nível das ruas ou subir ao das academias? Não creio. E comigo acredito estar a maioria. Nem uma coisa nem outra. Do contrário, teríamos a anarquia linguística, a Torre de Babel, na qual, por falta de regras mínimas, dificilmente haveria entendimento entre as pessoas, ou, por outro lado, um pedantismo inadmissível, posto que elitista e excludente, do qual o povo, o verdadeiro dono da língua, estaria de fora.
Libertação, sim, mas com moderação, com prudência, essa palavra obsoleta. No poema Poética, do mesmo livro Libertinagem mencionado, Bandeira escreveu:
“Estou farto do lirismo comedido
do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
[protocolo manifestações de apreço ao Sr.
[diretor
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
[o cunho vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si
[mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar
[com cem modelos de cartas e as diferentes
[maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”
Libertação, sim, mas com moderação e prudência, volto a defender, juntando a gramática à língua do povo. Observe-se que no poema acima o poeta, já em 1930, aboliu quase que totalmente a pontuação, mas isso não significou um rompimento definitivo e absoluto com as regras da língua. Bandeira era sábio o suficiente para não cair em tal exagero. Abaixo os puristas, sim, ma non troppo, afinal, não estamos na selva.
E a mesóclise? O que tem ela a ver com tudo isso? Pois é. A velha e esnobe mesóclise, aquela que nos obriga a colocar o pronome no meio do verbo e a, mesmo sem querer, pedantemente empinar o nariz. Pois é. Fico a me perguntar se ainda há lugar em nossa língua brasileira para coisas do tipo: “Dar-te-ei um presente”. Quem fala assim? E quem escreve? Por que não simplesmente “Te darei um presente”, que é como todo mundo fala, inclusive os cultos, no dia a dia? Na poesia, observo que os autores praticamente já aboliram a mesóclise, e não creio que tenha sido apenas por licença poética. Mas na prosa, a danada resiste e nos dá trabalho na hora de enfrentá-la.
Há quem, mesmo na prosa, já ignora a mesóclise totalmente. Admiro-os, mas às vezes reluto em acompanhá-los. Talvez devido à minha formação jurídica, de quem aprendeu a cultuar as normas. É possível. Vício do ofício. Mas o fato é que ela me deixa desconfortável. E só isso, para mim, retira-lhe o sentido, a razão de ser. Para mim, como disse Bandeira, ela não passa de uma macaqueação da sintaxe lusíada, absolutamente estranha ao coloquialismo dos trópicos. Algo assim como um fraque na praia.
Jânio Quadros adorava uma mesóclise. Michel Temer parece gostar também. Mas não são autores que devam ser citados. E muito menos seguidos.