A Astier Basílio, enfrentando com denodo o frio e os escritores russos
Raskólnikov procura uma taberna, experimentando a novidade de “certa sede de gente” (p. 18), apesar de não estar habituado a multidões e sentir repulsa e desconforto se estranhos o abordam ou nele tocam. Em lá chegando, ele é abordado por um funcionário público decadente, Marmieládov, que inicia um solilóquio sobre o seu alcoolismo, a doença da sofrida esposa, a prostituição da filha, falando de sua miséria. Tendo abandonado o emprego e se desfeito da roupa decente que a mulher e a filha lhe compraram, para que ele pudesse desempenhar as suas funções, Marmieládov, buscando a atenção de Raskólnikov e tagarelando sem parar, disse que foi pedir dinheiro a filha para beber,
embora estivesse ausente de casa há cinco dias. A filha lhe dera 30 copeques, que ele transformara todo em bebida, na sórdida taberna onde se encontravam.
A filha Sônia entregara a quantia sem uma palavra, sem uma recriminação, apesar de o dinheiro haver de lhe faltar para as suas necessidades pessoais e para o asseio do corpo, exigência premente no desempenho de sua profissão de prostituta:
“Não disse nada, apenas olhou em silêncio para mim... Não é na terra, e sim lá... que se fica triste assim pelas pessoas, que se chora por elas, mas sem censurar, sem censurar! Trinta copeques, é isso. E agora ela mesma está precisando deles, hein? O que acha, caro senhor meu? Porque doravante ela vai ter de cuidar do asseio. E esse, asseio, que é especial, custa dinheiro, compreende? Compreende? Ora, ela precisa de cremes também, pois sem eles não dá; de saias engomadas, daqueles sapatos, com mais encanto, para mostrar o pezinho quando tiver de passar por uma poça d’água. Será que entende, senhor, será que entende o que significa esse asseio? E veja só, eu, o próprio pai, embolsei esses mesmos trinta copeques para encher a cara! E estou bêbado! Aliás já os bebi!...” (p. 28-29).
Meu encontro com Doistoévski é tardio. Li Crime e castigo nos anos 90, em função da minha tese de doutorado. Estou pagando uma dívida comigo próprio nesta atual leitura. Meu primeiro contato com este romance se deu pela tradução de Rosário Fusco (Rio de Janeiro, José Olympio, 1951, 2 v.). Agora, faço a releitura tendo em mãos a tradução de Paulo Bezerra, já na sétima edição (São Paulo, Editora 34, 2016). Não sei dizer se a tradução de Rosário Fusco era direta do russo ou não. A de Paulo Bezerra, contudo, não só é direta do russo, mas sai das mãos de quem viveu na Rússia e tornou-se professor de língua e literatura russa, além de tradutor profissional dessa língua, traduzindo todo Dostoiévski e Bakhtin.
A edição que tenho é especial em todos os sentidos. Paulo Bezerra a dedica a Bóris Schnaiderman – “saudoso mestre de todos nós, intérpretes do mundo russo” –, a quem faz um agradecimento especial “pela leitura de parte do texto” e pelas “sugestões importantes que fez para a tradução” (p. 6). Trata-se, ainda, de uma tradução revisada pelo próprio Paulo Bezerra, em comemoração aos 150 anos de Crime e castigo.
É nesse contexto que se sobressai um detalhe importante para quem trabalha com tradução: a tradução é um processo, necessitando sempre de ser revisitada e revista. É assim que a entende Paulo Bezerra. É assim que eu a entendo, mesmo não sendo tradutor profissional. Com relação ao texto aqui citado do solilóquio de Marmieládov, Paulo Bezerra escreve uma nota para explicar a sua escolha pela palavra asseio, nota que merece ser citada na sua íntegra:
“Do original tchistotá, que tem, especificamente nesse contexto, três significados: pureza, limpeza e asseio. Nas edições anteriores eu usara “pureza”, tendo em vista que Marmieládov exalta a grandeza e a pureza de alma de Sônia, mas nesta revisão reconsiderei o sentido de suas palavras, porque nessa passagem ele também se refere concretamente às necessidades de Sônia no exercício da prostituição” (nota 15, p. 28).
O que me traz esta nota de Paulo Bezerra? Duas lições. A primeira é que o tradutor, tendo consciência do que está fazendo, deve, quando necessário e de acordo com o contexto, reconsiderar a sua tradução. As escolhas tradutórias não podem, portanto, se fazer sem que haja uma negociação, como afirma Umberto Eco em Dire quase la stessa cosa (Milano, Bompiani, 2016), que passa, necessariamente, pelo contexto e pela estrutura do que se traduz. Além da consciência do processo, isto reflete a honestidade do tradutor, que se mostra capaz de ir de encontro a si mesmo e de modificar o que fizera, e a responsabilidade com os leitores, ciente de que existe um poder maior do que a sua vontade: o poder do texto.A segunda lição é que, no caso de Crime e castigo, estamos diante de uma língua que se fala e se escreve, língua de escritores fenomenais e traduzida por quem a conhece por dentro, tendo-a vivenciado por anos, em plena Rússia, e a praticado na condição de leitor privilegiado, que é como vejo o tradutor. Apesar de todos os elementos vantajosos ao tradutor, percebemos, pelo cuidado com a explicação em nota, que as dificuldades são imensas, por se encontrar o tradutor diante de um registro especial da língua – a linguagem literária –, que permite ao escritor uma maior liberdade dentro das possiblidades desse impressionante sistema, que é a língua. Tanto é que, na página 52, Paulo Bezerra faz uma nova nota, para falar da repercussão da sua escolha na estrutura de Crime e castigo:
“Na relação dialógica que caracteriza o romance de Dostoiévski, a palavra de um falante abre uma fissura na consciência do outro, que a repete ou retoma em forma de sinonímica. É o que acontece com Raskólnikov, que aqui retoma literalmente as palavras de Marmieládov para equiparar o casamento de Dúnia com Lújin à prostituição de Sônia. Daí a necessidade de repetir aquelas palavras, seguindo a mesma ordem de mudança que nelas efetuei nesta revisão” (nota 29).
Imaginemos, agora, quantas são as dificuldades, muitas delas intransponíveis, com relação a uma língua que já não se fala, embora esteja viva nos textos que nos foram legados? O tradutor pode até errar, e é normal que isto aconteça, pois há estruturas que o deixam hesitante, irritado, decepcionado, por se mostrarem com um bloco adamantino imune a qualquer tentativa de fissura na sua carapaça, que permita ao tradutor entrar no seu cerne. Mas, antes de tudo, aquilo que ele traduz e apresenta como produto acabado deve receber a chancela que eu sempre ouvia da boca de outro querido e saudoso mestre, o professor Henrique Graciano Murachco – “é uma tradução honesta”.
É diante dessas barreiras que se levantam contra quem traduz, que procuramos um entendimento melhor de línguas como o grego e o latim, às quais devemos nos dirigir, honestamente e desprovidos de pré-conceitos, em busca dos detalhes que só o contexto e a estrutura do texto são capazes de nos indicar, pois como dizia Raskólnikov:
“Detalhes, os detalhes são o principal! Pois são justamente esses detalhes que botam a perder sempre e tudo...” (p. 12).