Qual o destino de Aglaia Negromonte? Desdobramento? Fuga da realidade? Delírio? Fênix renascida, vitoriosa sobre os seus medos e suas perdas? Cabe ao leitor decidir. Para uma personagem cindida, nada como uma narrativa cindida a ser fruída tanto mais quanto se é decifrada... até onde ela permite.
A narrativa psicológica de O pássaro secreto, de Marília Carneiro Arnaud (1ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2021), parece, à primeira vista, dar as pistas ao leitor, por causa das claras referências intertextuais. Aos poucos, no entanto, elas vão ficando para trás, sendo sutilmente desconstruídas, para serem reconstruídas em outras significações, sendo a maior delas o deslocamento da narradora-personagem, em seu desconforto diante de um mundo exterior desconcertado, que reflete seu desconcerto interior.
É tentador falar das três Graças mitológicas, de que provêm o seu nome, Aglaia, e os nomes de suas irmãs, Eufrosine e Thalie, mas ela mesma já o faz; é tentador ir buscar em Shakespeare, tantas vezes citado, e nos demais autores referidos, as ligações com o mundo literário, mas Aglaia, criada por uma mãe professora de literatura e por um pai ator, envolvida desde cedo com a palavra e com o texto ficcional, já o faz. E ao fazer as relações, contribui para reconstruí-los em direção à sua história, um mundo cindido com relação a tudo e a todos.
Aglaia está longe de ser o brilho, que a graça mitológica homônima, esconde na etimologia de seu nome; assim, como Eufrosine não é, necessariamente, a do bem pensar. Mas é revelador o quanto o nome de sua terceira irmã, Thalie, não representa, ao menos para ela, a festa ou florescimento da sua significação em grego. Na realidade, Thalie é o ponto da ruptura entre a adolescente, que prova os dissabores próprios da idade, e a perturbação psíquica, que a acompanhará indefinidamente. Thalie, para quem convergem todos os olhares e toda a simpatia, desde a sua entrada na vida de Aglaia, é a dor, o amargor, a sombra da tristeza, a inquietude da obsessão, aquela que cristaliza em si, tudo o que lhe falta, considerada como motivo maior de todas as suas perdas. Thalie é o atiçamento, a cada pedaço conquistado do seu terreno, da Coisa que habita Aglaia, crescendo dentro de si, na proporção do seu desconforto, no confronto com a irmã, desalojando-a de si mesma – “O inferno não era um lugar. O inferno era eu” (p. 178).
Nessa desconstrução, Aglaia já deixa a pista de que o mito deve ser lido de outro modo. O seu sobrenome, vindo do pai, simbolicamente, chamado Heleno, em nada lembra o Olimpo nivoso de Zeus, de quem as Graças são filhas. Negromonte tem, para Aglaia, o sentido de “mistério e solidão” (p. 10), que ela guarda dentro de si.
Sem que tenha sido nunca uma pessoa ajustada ao mundo – achava-se feia, gorducha, pequena, sofrendo bullying de alguns colegas na escola, ignorada por muitos outros, apenas tolerada pelos professores –, Aglaia encontra guarida na palavra, que, cedo, lhe fizera companhia e através de que descobrira o mundo. A palavra, a literatura, a criação de histórias tornam-se o fundamento de um mundo para ela sólido, mundo que, de uma caixa restrita, se abre com a palavra e se expande com a leitura, permitindo-lhe ver uma mãe, submissa, com amor obcecado pelo marido, mergulhada nos encargos e despesas da casa, e um pai ausente, vivendo uma realidade à parte, na qual passava o tempo todo representando, para satisfazer um ego desmedido. Aglaia sente-se órfã de pais vivos.
Aos poucos, a percepção desse mundo em processo de desmoronamento acabará cindindo-a por completo, dando-lhe a consciência da perda “das rédeas de” sua “vida” (p. 67). A ferida se abre. Aglaia é a própria ferida aberta, que renuncia à fala, porque “feridas abertas não falam. Feridas abertas sangram”. (p. 107). Aglaia passa a ver-se como “garota deformada” (p. 155), vivendo um mundo desarmônico, “espelho rachado” (p. 171), cuja fragmentação torna-lhe impossível a captação do todo; nesse “terreno coberto de rochas, abrolhos e cactos indomáveis” (p. 180), ela nada percebe a não ser “uma vida que ficou para trás” (p. 182), sem que possa avançar “um milímetro para além de” seu “abandono” (p. 185). Sem pertencer “a lugar nenhum”,“viver tornou-se a vertigem de andar em uma corda estendida sobre um precipício” (p. 179).
O resultado do que Aglaia considera perda é o deslocamento. Os sintomas são as crises de pânico, de ansiedade, a bulimia, a Coisa que cresce dentro de si, a cada sentimento de falta ou de desconforto diante das situações, que ela tem por constrangedoras ou ameaçadoras. Marília Carneiro Arnaud vai construindo com habilidade ímpar esta cisão de Aglaia, passando da garota que sofre as agruras intrínsecas à adolescência, com a família, a puberdade e com a escola, cujos princípios de “autoridade, disciplina, censura” ela odeia (p. 26); sem amigos, e que presencia o momento importante da ruptura de seu mundo familiar, com a dessacralização da imagem dos pais, para chegar a uma personalidade perturbada, que se mostra em total desconcerto e desconforto diante das perdas. Não apenas porque são perdas, mas porque ela considera que lhe foram arrancadas, tomadas violentamente, dentre elas o amor, o prazer do namoro e do sexo:
“a minha vida se encontrava a quilômetros de mim, por certo, esperando-me em algum lugar. Provavelmente junto a todas as coisas que eu perdera” (p. 177).
Seu único acolhimento é a avó Sarita e o sítio Saudade, de sua propriedade. Há algo mais emblemático do que o nome do sítio, para exprimir o refúgio com relação a suas faltas – amor, aceitação, quietude? Por outro lado, a terapia psicanalítica ou psiquiátrica, a que é submetida, não consegue competir com a avó. Ela não só escuta Aglaia, ela enxerga Aglaia e a compreende. Fora desse acolhimento, tudo lhe parece em absoluta cisão: presença/ausência; luz/escuridão; sons vibrantes/pavoroso silêncio (p. 188).
Marília Carneiro Arnaud trabalha, paciente e habilidosamente, o leitor, para colocá-lo diante de uma adolescente psiquicamente perturbada, cujo enfrentamento com a realidade só lhe causa dor, como se o tempo se tivesse perdido dela e a vida fosse “um mostrador sem ponteiros” (p. 171): incompreensão, perdas, deslocamento, atos desvairados, internação, psicotrópicos que a entorpecem e a engordam, até a personagem vê-se a si mesma como um fantasma (p. 189).
A trama é bem urdida, partindo do que se poderia, erroneamente, pensar como uma história sobre a vida aborrecida de uma adolescente não menos, como se fora o diário de sua vida. É preciso lembrar, no entanto, que a história é revelada a posteriori – os fatos mais decisivos da vida de Aglaia têm termo aos 14 anos, quando ela considera que envelheceu e morreu (p. 188), enquanto ela os revela, criando sua história, sua “elegia” (p. 24), aos 40. A narrativa construída em dois níveis é o exato reflexo da complexidade de sua personalidade perturbada, por não se encaixar em lugar nenhum – “o pior de tudo era estar à parte” (p. 99).
Escritora amadurecida, Marília Carneiro Arnaud constrói as suas narrativas com um jogo sutil entre passado e presente, sem que ao leitor se escancare a divisão temporal. A cisão temporal só é percebida, se nos dermos conta de que há uma separação formal intencional, para as duas narrativas: uma mais intimista e curta, compondo os capítulos ímpares; outra, mais longa, subjetiva, compondo os capítulos pares. Nas duas, a diferença no destaque da fonte, de itálico para normal, como um chamamento da atenção do leitor, que deverá retomar a leitura dos capítulos ímpares, sem solução de continuidade, se quiser mergulhar, um pouco que seja, no nebuloso mundo de Aglaia Negromonte, “submersa na essência do silêncio” e “livre de” si “mesma” (p. 9).