“Quintilius Varus, devolve as minhas legiões!”
Quintili Vare, legiones redde!.
Quintili Vare, legiones redde!.
Suetônio nos relata que o grande desastre romano na batalha de Teutoburgo, em 9 d.C., na Germânia, onde três legiões foram massacradas com seu general, Quintílio Varo, seus oficiais e todas as tropas auxiliares, causou grande consternação ao imperador Otávio Augusto César, ao ponto de ele deixar crescer a barba e o cabelo por vários meses, e, de tempos em tempos, bater a cabeça contra a porta vociferando contra Varo, para que lhe devolvesse as suas legiões. Diz ainda Suetônio, que o aniversário desse desastre (clades) foi doravante para
Augusto um dia de tristeza e de luto (maestum ac lugubrem, Suetônio, O divino Augusto, XXIII).
No relato de Euclides da Cunha, em Os sertões, sobre a guerra de Canudos, há, pelo menos, três vertentes a seguir, a partir das metáforas que o escritor cria e que, pouco a pouco, vai soltando as frases que nos levam a cada uma delas, funcionando como prolepses da narrativa: a guerra fratricida, a guerra de guerrilha e a guerra de destruição total. Para a guerra fratricida, temos a referência à guerra da Vendeia, à guerra dos Chouans e a Tebas; na guerra de guerrilha, está a referência à batalha de Teutoburgo, citada acima, e para a guerra de destruição total, encontram-se as referências a Troia e, mais uma vez, a Tebas.
Diferentemente, do que muitos pensam e do que o próprio Euclides chegou a pensar, antes de se encontrar no palco da guerra, as referências à Vendeia e aos Chouans, não amarram o conflito em Canudos a uma revolta de monarquistas contra republicanos, conforme aconteceu na França, em 1793 e 1799. Para entendermos melhor estas referências, saibamos que Victor Hugo retrata o momento da revolta monarquista na Vendeia, no norte da França, contra a revolução francesa e a proclamação da primeira república (1792), no seu romance 93 (Quatrevingt-treize), numa alusão também ao ano em que o período de Terror da Revolução Francesa teria início (1793-1795).
Já o escritor Honoré de Balzac prova o seu primeiro sucesso com o romance Les Chouans, sobre o levante antirrepublicano, na Bretanha, em 1799. Embora os Chouans e a Vendeia sejam momentos diferentes, o fato de terem sido uma revolta católica, monarquista e antirrepublicana, contando com a participação de camponeses, une os dois episódios, que passaram a ser conhecidos como as Guerras do Oeste. Se Euclides mantém estas referências, na escrita final do livro, acreditamos que tenha sido porque, assim como a guerra dos Chouans e a da Vendeia, a guerra de Canudos foi uma guerra fratricida – franceses contra franceses, brasileiros contra brasileiros (todas as referências a Os sertões são provenientes da edição preparada por Andre Bittencourt, publicada pela Peguin Classics/Companhia das Letras, São Paulo, 2019):
“E Canudos era a Vendeia...”
"O Homem", Capítulo V, p. 247
“Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendeia. O chouan e as charnecas emparelham-se bem como o jagunço e as caatingas”
"A Luta", Parte I – Preliminares, Capítulo IV, p. 290
“A despeito das ordens do dia em que se cantava vitória, os sertanejos apareciam como os chouans depois de Fontenay”
“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo V, “O assalto”, p. 513
“Citavam-se nomes de novos cabecilhas. Apelidos funambulescos como o dos chouans: Pedro, o Invisível, José Gamo, Caco de Ouro, e outros”
“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo VI, p. 530
Não satisfeito com as referências a guerras reais, Euclides da Cunha procura enfatizar o fratricídio com a referência à mítica guerra entre os irmãos tebanos, Polínices e Etéocles, retratada por Ésquilo, na peça Os sete contra Tebas, e por Eurípides, em As Fenicianas. Os dois irmãos, ambos filhos de Édipo, lutando pelo poder, acabam por se matar. Embora os sete heróis levados a Tebas, por Polínices, ele incluído entre os sete, não tenham tido êxito na retomada do poder, a cidade será destruída, tempos depois, pelos Epígonos, os filhos destes heróis, dentre eles os famosos Estênelos e Diomedes, ambos presentes na guerra de Troia. Esta é a ponte para a referência à guerra de destruição total: Tebas e Troia foram destruídas totalmente, assim como Canudos:
“Comoviam-no o espetáculo dos infelizes que acabava de encontrar armados até os dentes, e o quadro emocionante daquela Tebaida turbulenta”
Ratificando a guerra fratricida com o viés da mitologia, lembramos das insistentes alusões de Euclides da Cunha aos sertanejos como titãs, o que nos remete à Titanomaquia, luta de Zeus, contra o pai e os tios, os titãs, para o estabelecimento da ordem. Zeus, como deus cósmico, acaba vencendo, utilizando como armas os raios fabricados pelos Ciclopes. Não é à toa que, ao final da narrativa, Euclides compõe a imagem da derrocada de Canudo, de que a beleza da construção emerge da ruína da cidadela:
“O Homem”, Capítulo V, p. 250
“A igreja sinistra bojava, em relevo, sobre o casario em ruínas; e, impávidos ante as balas que sobre ela convergiam, viam-se, no resplendor fugaz das fuzilarias, deslizando-lhe pelas paredes e entulhos, subindo-lhe pelas torres derrocadas ou caindo por elas abaixo, de borco, presos aos blocos disjungidos, como titãs fulminados, vistos de relance num coriscar de raios, aqueles rudes patrícios indomáveis...”
A terceira vertente é a da guerra de guerrilha, “método combatente dos matutos – guerrilheiros impalpáveis dentro da tática estonteadora da fuga!” (“A Luta”, Parte I – Preliminares, Capítulo III, p. 282), utilizando-se da “guerrilha de tocaias” (“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo V, “O assalto”, p. 507). Para dar a sustentação à guerra de guerrilha, cujo resultado é derrota vergonhosa, com o mais fraco vencendo, de modo humilhante, o mais forte, Euclides da Cunha compara a expedição Moreira César à batalha de Teutoburgo:
“A Luta”, Parte VI – Últimos Dias, Capítulo III, p. 615
“Os batalhões de Moreira César eram as legiões de Varo... Enlaçavam-nos, na fuga, catervas formidandas”
“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo I, p. 408
Quintílio Varo, eleito Cônsul, em 13 a.C. (Augustus, Res gestae, 12), era o comandante das três legiões romanas, derrotadas na floresta de Teutoburgo. Com essa desastrosa perda, em 9 d. C., seguida do suicídio de Varo, acabara-se o sonho de Augusto de submissão da Germânia. A emboscada às legiões romanas e a guerra de guerrilha forma comandadas por Armínio, germânico criado entre os romanos e tido como aliado inquestionável, até se passar para o lado de seu povo. Armínio cortou a cabeça de Varo, como troféu, e a enviou à Boêmia, ofertando-a ao rei Maroboduus, que, não aceitando o presente, remeteu-a aos romanos, para as honras fúnebres ao antigo cônsul.
A relação estabelecida por Euclides da Cunha é, como já vimos, feita com o desastre da terceira expedição, comandada pelo temido coronel Moreira César, o “Corta-cabeças” (“A Luta”, Parte III – Expedição Moreira César, Capítulo I, p. 352). A morte de Moreira César, atingido por dois tiros, no início dos combates daquela expedição, promoveu um desconcerto nas tropas e uma “debandada” geral (Capítulo IV, p. 390), cujo resultado foi a perda de 200 combatentes do exército, além da morte, decapitação e empalamento do coronel Tamarindo, assim como aconteceu a decapitação de Varo por Armínio. Os jagunços utilizaram esses despojos para incutir o terror nas expedições seguintes:
“Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho.
[...]
Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo” (“A Luta”, Parte III – Expedição Moreira César, Capítulo VI, p. 394-5).
[...]
“À margem esquerda do caminho, erguido num tronco – feito um cabide em que estivesse dependurado um fardamento velho – o arcabouço do coronel Tamarindo, decapitado, braços pendidos, mãos esqueléticas calçando luvas pretas...” (“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo II, p. 432).
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Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo” (“A Luta”, Parte III – Expedição Moreira César, Capítulo VI, p. 394-5).
[...]
“À margem esquerda do caminho, erguido num tronco – feito um cabide em que estivesse dependurado um fardamento velho – o arcabouço do coronel Tamarindo, decapitado, braços pendidos, mãos esqueléticas calçando luvas pretas...” (“A Luta”, Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo II, p. 432).
A guerra de “guerrilhas solertes dos jagunços” (“A Luta”, Quarta Parte – Quarta Expedição, Capítulo II, p. 417) se impõe contra um exército muito bem armado com canhões Krupp e um canhão Whitworth 32. Este último, apelidado de “matadeira” (“A Luta”, Parte IV – Quarta expedição, Capítulo IV, p. 477), o “monstruoso espantalho de aço” torna-se um estorvo com os seus 1700 quilos, passando a ser designado como “um trambolho” (p. 418), “o obstruente 32” (p. 422), “o moroso 32” (p. 426), “o ronceiro 32” (p. 430). Todo o trabalho de levá-lo a Canudos, seguido de um aparelhamento dos caminhos para a sua condução, acaba-se com um único tiro, e a sua completa inutilização, ao se quebrar uma peça do seu obturador.
Os jagunços, conhecedores da região e com ela se confundindo, são mostrados por Euclides da Cunha, em página antológica, numa simbiose homem-terra e homem-vegetação, criando a imagem do sertanejo como um guerrilheiro com “torso de atleta, encourado e rude”, “trágico caçador de brigadas”, “Anteu, indomável”, “titã bronzeado, fazendo vacilar a marcha dos exércitos”, este um “minotauro” perdido nos desvãos de uma terra e de uma flora agressivas, mas que abria “ao sertanejo um seio carinhoso e amigo” (“A Luta”, Parte I – Preliminares, Capítulo III, p. 288-289).
É por estas estratégias estilísticas, cujas prolepses são claras apenas aos que conhecem as referências, que Os sertões alcançou uma estatura literária, ainda que no seu cerne e na sua intenção não tenha sido escrito para isto. Tendo chegado a Canudos apenas com a quarta expedição, Euclides da Cunha reconstrói o que não presenciou, e mais ainda o que presenciou, com o estilo literário que eternizaria este livro, fazendo-o dos mais importantes livros do mundo. Não era para menos, a guerra, à sua chegada, já se encontrava romanceada na boca das gentes:
“Canudos aumentara em três semanas de modo extraordinário. A nova do último triunfo sobre a expedição Febrônio, avolumada pelos que a espalhavam, romanceada já de numerosos episódios, destruíra as últimas vacilações dos crentes que até então tinham temido procurar o falanstério de Antônio Conselheiro”
“A Luta”, Parte III – Expedição Moreira César, Capítulo I, p. 347).