Somos, no geral, a parte da humanidade que almoça e janta, como se lê no poema de Gullar. São alguns de nós, ou raramente nós mesmos em momentos específicos, que trazem o necessário espanto.
Nem sempre é fácil dizer por que um artista e não outro está na nossa estante, ou sobre o piano, ou na nossa "playlist".
Podemos listar algumas qualidades, mas o interlocutor vai necessariamente nos perguntar porque não outros, de qualidade comparável. E a resposta não é simples. Talvez objetivamente nem exista.
Ouvi Nelson Freire ao vivo pela primeira vez em um recital na Sala Martins Penna do Teatro Nacional, em Brasília. Não lembro bem o ano.
Era na época em que a capital de uma das maiores economias do planeta tinha um Teatro Nacional aberto. Não recordo de todo o programa. Houve uma Sonata de Brahms e, particularmente, o Noturno em Ré bemol maior de Chopin (Op. 27 No 2).
Chopin e seu(sua) intérprete de alto nível, quando tudo funciona, produzem nada menos do que um milagre. Trazem aos ouvidos uma ilusão de continuidade, de frase melódica, de discurso musical, quando mecanicamente o que está acontecendo é a percussão de algumas cordas. Eu nunca ouvi algo que se aproximasse daquele Chopin em nenhuma performance ao vivo, e acho que foi naquele momento que me tornei fã.
Em tempos de exposição total de intimidade, por parte de celebridades e principalmente de desconhecidos, Nelson manteve-se fiel a seu estilo reservado. Não foram muitas as entrevistas, e era raríssimo que nelas ele falasse de algo além de música. Embora exista um perfil Nelson Freire, no Facebook, ele é claramente obra de fãs e amigos. O que conheço de Nelson para além de sua performance musical é por comentários de artistas próximos a ele. As duas histórias que trago aqui me foram contadas por Neusa França, grande pianista e mestra de piano de muitos, inclusive minha.
Nelson tinha uma leitura à primeira vista lendária. Neusa conta que colocou o Rondó Brilhante de Weber, uma peça não muito comum do repertório para piano na estante com Nelson ao piano. E ele a tocou, no andamento, sem errar uma nota, em primeira leitura. Se restam dúvidas, vejam aqui a surpresa da amiga Martha Argerich, outra gigante do piano, quando ele timidamente comenta "nunca toquei" depois de....tocar este Schumann.
Nelson também possuía a característica conhecida como ouvido absoluto. Ao contrário do que o nome sugere, é uma propriedade de percepção musical que existe em níveis diversos. Simplificadamente, queremos dizer que ele conseguia nomear uma nota de ouvido, e não apenas sua função harmônica relativa a outra. Sabia, por assim dizer, identificar o tom da música apenas ouvindo-a. Também, ao contrário do que a maioria dos leigos pensa, esta é uma habilidade rara mesmo entre músicos profissionais. E saber exatamente qual sua função na apreciação ou execução musical (sem falar na vida em geral) ainda é um mistério.
Também é Neusa que nos conta sobre outro "teste": pediu que ele cantarolasse uma melodia escrita. Ele riu de imediato, porque já era óbvio que sua fama o precedera. Ele não cantava de maneira afinada. Você leu certo: ele era capaz de identificar qualquer nota de ouvido, reproduzi-la de imediato ao piano, mas não necessariamente cantá-la.
As habilidades e as dificuldades de cada ser humano, mesmo dos maiores, são as mais curiosas.
A existência de um grande músico especializado nas obras de séculos passados (curiosamente, algo que só existe na modernidade) soa muito estranha para leigos, e invariavelmente os chamados músicos clássicos são perguntados sobre música popular. Lembro de uma entrevista (Veja, páginas amarelas, muitos e muitos anos atrás): insistentemente perguntado sobre música popular, ele faz um elogio a Ella Fitzgerald. "Alguém desta década?", pediram. Que me lembre, não houve outra resposta.
É particularmente triste acompanhar os relatos de que Nelson Freire estava enfrentando dificuldades nos últimos anos. Ele teve uma queda andando em uma de nossas esburacadas calçadas, uma fratura, e ainda não se sentia à vontade ao piano.
Segundo alguns relatos ele tinha dúvidas se voltaria a tocar, e esta perspectiva o perturbava profundamente.
Isto me lembrou um trecho do excelente filme "32 curtas sobre Glenn Gould" (François Girard, 1993), pequenos quadros e depoimentos sobre o pianista canadense que nos deixou prematuramente aos 50 anos de idade. Em particular, temos o depoimento da irmã, revelando que Glenn era inseguro sobre o seu significado, sua importância no cenário da música.
Ela então comenta "Glenn, se você soubesse o quanto era amado...." A morte inesperada de Freire gerou reações de todos os grandes artistas e profissionais da música clássica: das grandes orquestras, das maiores salas de espetáculo do planeta dos selos mais prestigiados da indústria fonográfica, dos mais famosos fabricantes de pianos. Eu, que nunca fiz mais do que dar um tímido parabéns pra Nelson Freire após um concerto, desejo voltar no tempo e lhe mandar grandes mensagens. Você não precisaria tocar mais uma nota. O que fez já nos deixa eternamente em dívida.
Obrigado, maestro.