Há muito que via e ouvia o cronista Carlos Romero elogiar e assistir com certa frequência à oitava sinfonia de Bruckner, uma de suas músicas favoritas. Sem ter ainda a necessária familiaridade com a obra, cuja dimensão e complexidade mereciam uma atenção mais dedicada, sempre me punha curioso. E pensei: se ele, que tão bem conhece música, é fascinado por esta sinfonia, decerto, é porque ela deve ter algo muito especial.
Iniciei-me no suntuoso mundo da magnífica obra do austríaco de Ansfelden e me surpreendi com tamanha beleza. A música clássica não é objetiva. Sua forma, frases, elementos e conteúdo apenas sugerem, incitam, resgatam, estimulam os sentidos. E nem sempre o ouvinte capta com exatidão o que o compositor quis dizer, como acontece em todas as obras de arte.
Cabe-nos estar abertos, com as antenas da alma lubrificadas o bastante para permitir a passagem das vibrações elevadas, a fim de que a essência contida na criação artística consiga nos proporcionar a emoção plena, divina e extasiante. Era, certamente, essa percepção que causava em Carlos Romero tal deslumbramento.
Nesta sinfonia, Bruckner funde a visão dos planos cósmicos, terrenos e galácticos através de diálogos concebidos num conjunto de temas e timbres tão diversificados quanto a própria Criação Divina. Obra que provoca experiências que transcendem os sentidos comuns e imediatos, capaz de nos levar às sutis frequências do pensamento, estados de consciência, e de não consciência, que simultaneamente nos fazem vislumbrar a grandeza da Arte e do existir.
Bruckner resgata na oitava a cosmovisão em que reúne a história primitiva, através dos batuques marcados pela percussão ritmada , imprime cenas paisagísticas que vão desde alvoradas a crepúsculos enternecedores, e traz o canto dos pássaros e a delicadeza dos córregos iluminados pela luz da manhã a se infiltrar pelos frondosos bosques de uma floresta.
Ele também retrata a imprevisibilidade da vida nas súbitas e pesadas tempestades sonoras, entoadas pelos metais, imediatamente atenuadas pela suavidade melódica das cordas e a esperançosa doçura que desperta nas harpas.
Mesmo escrita em um vasto tecido multicor que, apesar da riqueza de nuances, timbres, melodias e sonoridade, a obra conserva uma unidade costurada pelos temas que aparecem pontuados como leitmotiv em todo o transcurso. Não somente na formas melódicas inteiramente identificadas, mas também nos fragmentos presentes em células rítmicas intrínsecas aos temas. E a abundância se expande na variedade de climas que vão das tensões crescentes , sempre explodindo em clímax grandiosos, seguidos de tréguas de quietude, aos clamores nostálgicos, bucolismo pastoral, angústia existencial, para assim atingir extasiantes momentos de alegria exuberante. Como o cronista dizia, “é uma obra que mexe com a gente”. Ao adágio, ele sempre se referia com reverência mística, sobretudo ao seu ocaso, delicadamente nostálgico.
Essa é a função sublime da Música. Colocar-se acima da sugestão pueril e imediatista, provocar sensações mais profundas, que nos fazem enxergar a felicidade por trás de todos os conflitos da existência terrena.
Certa vez, nosso pai comentou: “Que pena que nós nunca tivemos a oportunidade de assistir à oitava de Bruckner em viagens ao exterior...” Ponderei que a dificuldade se devesse à magnitude, pois é uma peça extensa e composta para uma grande orquestra.
E veio a ideia: “Vamos realizar esse sonho, cronista. Em vez de apelar para a sorte aleatória, pesquisaremos nos sites das sinfônicas de alguns países qual delas tenha incluído a oitava no seu programa de concerto.
Tivemos sorte. No repertório da Filarmônica de Berlim, ainda considerada com a de Israel, New York, Chicago e Viena uma das cinco melhores do mundo, estavam previstas duas apresentações em noites consecutivas. Logo tratamos de planejar o próximo passeio para a tal data, incluindo a capital da Alemanha. Toda a viagem transcorreu envolta nesta expectativa. A oitava de Bruckner, que inúmeras vezes preencheu seu aconchego doméstico, na casa da praia, e até dentro de avião, com fone de ouvidos, enfim, adentraria de corpo e alma na história de vida do cronista ensimesmado por música. Afinal, sua paixão pelas obras clássicas o fizeram membro da Sociedade de Cultura da Paraíba, na década de 40, e um dos fundadores da Orquestra Sinfônica da Paraíba. Além de ter dirigido um programa de música erudita na Rádio Tabajara (PB), chamado “Paisagem Sonora”.
Eis chegada a grande noite, primavera de 2017, em Berlim. Sob a regência de Sir Simon Rattle, estávamos lá, bem na frente, bordejando a palco da Filarmônica completa.
Melhor do que a cena era o seu semblante vestido de total enlevo e embevecimento. Um misto de alegria infantil com a expressão de quem não acreditava no que via e ouviria.
No final do terceiro movimento, o saudoso e contagiante adágio, sob a compenetração absolutamente gutural da plateia, o êxtase geral era profundo e compenetrado. Dava-se o silêncio característico dos auditórios, em que se aguardam até os intervalos para poder se mexer, tossir ou sussurrar.
Exatamente nesse clima. , percebo um discreto soluçar na respiração mais acelerada do cronista, sentado ao meu lado. Discretamente olho para ele e vejo uma lágrima de emoção escorrendo-lhe por baixo dos óculos. Aperto suavemente o seu braço com a mão, no mais amável e carinhoso afago, pleno de amor e admiração, já feito por mim em alguém, convicto de que nunca somos tão verdadeiros quanto nos momentos em que choramos. E disse-lhe, sem palavras: “A viagem valeu, papai. Sua sensibilidade é uma coisa rara”.
Nenhum aplauso posterior dado efusivamente ao final do concerto se compararia ao que intimamente eu dirigia àquele homem ao meu lado, espírito de rara sensibilidade, que fazia da Música suas mais autênticas preces, e que hoje flana por finas paragens à sua altura.