"Que eu não me esqueça,
mas que também não lembre o tempo todo"
O primeiro adeus doloroso aconteceu quando deixei a cidade da minha infância. Meu pai era um nômade, não aguentava viver muito tempo num mesmo lugar, por isso arranjava trabalhos que lhe permitissem viajar. Eu não acreditava que diria adeus ao grupo escolar que ficava do lado da minha casa, onde Dona Adelaide, a diretora, que morava ali na frente, tocava piano quando estava feliz. E a Maria Cristina, a menina de cachos dourados adotada por ela, uma princesinha, minha primeira paixão, mesmo sem a gente saber o que era aquilo. Por anos guardei nossa foto, num balanço de dois lugares que tinha no jardim da sua casa. Aos meninos da minha rua, cujos rostos desapareceram da minha memória, assim como seus nomes.
Ao quintal com um monte de árvores e um quartinho atrás, cheio de livros colecionados por meus pais e que servia de esconderijo para algumas "safadezas" infantis.
Outros adeuses se sucederam. Cada vez que meu pai mudava de cidade, um mundo ficava para trás e eu tinha que começar tudo de novo, até que viemos morar aqui. Achei linda essa cidade cheia de jardins. A casa alugada por nós tinha um terreno enorme do lado, com três coqueiros e uma duna de areia, onde os meninos que moravam ali antes, brincavam. Eu amava aquela casa pequena no bairro dos Expedicionários. Eu era um garoto calado, mas gostava de pensar e olhar. De vez em quando pegava um ônibus, só para passear e apreciar as ruas, a lagoa, a praia.
Lembro bem da minha decisão de não me mudar mais, mesmo tendo apenas doze anos de idade, independente da direção para onde os ventos soprassem meu pai em algum momento. Por sorte ou coincidência, quando ele precisou mudar de novo, eu já trabalhava e pude ficar. E isso acrescentou mais um adeus à minha coleção.
Mas a vida tem suas ironias, não é mesmo?
Descobri, depois de um tempo, que decidi ficar numa cidade de onde as pessoas iam embora.
São daqui os amigos que passei a chamar "de infância". Só que, aos pouquinhos, eles partiam, por todos os motivos que se possa imaginar. Porque a cidade era pequena para quem quisesse ser artista. Porque quem fez medicina ia fazer residência fora. Porque quem era gay não queria se expor. Por causa do mestrado, do doutorado, do concurso para trabalhar em outra cidade. Por querer viver outras realidades, quer seja trabalhar com os índios no Amazonas, com gorilas na África ou dançar lambada em Paris.
E lá se foram Ângela, Elzário, Justino, Carlinhos, Valdez, Tadeu, Rosângela, Daniela, Hermes, Sérgio, Márcia, Luciano, Vaz, Caio e tantos outros. São Paulo, Londres, Mato Grosso, Porto, Japão, Rio, Curitiba, Tocantins. Uns por um tempo, alguns para voltar nas férias, outros para não voltar mais.
Papai foi morar em outra cidade, para criar cabras e bodes. Olga foi morar no sul. Hugo foi morar no céu.
Dizer adeus ficou comum e me ensinou que tudo é passageiro, inclusive o cobrador e o motorista, o comandante e o comissário. A vida, e quem sabe até a morte, que se não é passageiro, deve ao menos ser passagem.
No meu trabalho, as pessoas ficam comigo por um tempo. Depois vão embora e deixam suas histórias. É um trabalho de adeuses, como os "filhos flecha" de Gibran. São adeuses lindos, ora emocionados, ora sem aviso.
Um dia me dei conta que, mesmo fincando pés, um tanto do "gen nômade" do meu pai tinha virado herança. Tantas vezes pegamos a estrada para rever nossos parentes, que já perdi as contas. Nós damos adeus da janela do carro e eles, da calçada. Rindo com água nos olhos, aquele riso que é para o outro não ficar triste, até que a reta hipnotizante da estrada, que se inicia partida, se transforma em vontade de chegar e a vida assim segue, desenhando trajetos de saudade.
Um dia decidi ficar, para não precisar dizer adeus, como se fosse possível interromper o processo divino da caminhada.
Um dia percebi que tinha aprendido a trazer, guardados comigo, todas as pessoas e lugares dos quais já me despedi. E quase não tenho mais medo das próximas despedidas, porque já sei, e isso é muito curioso, que às vezes elas viram dor, às vezes saudade, às vezes risada, às vezes história. E muitas vezes, estrada.