Minha rua não tem o esboço da tradição, mas é minha rua. Sou estrangeira de cinco anos para cá no lugar onde moro. Desde às cinco da manhã, vizinhos fechados em salas abafadas e escuras. Janelas fechadas para o mundo, roupas surradas. Uma das casas tem a voz calada pela morte do filho. A mulher é clara, olhos azuis, delgada. Nunca responde a chamados no portão ou chamadas telefônicas. Deslinkou-se do mundo. Quer copiar o filho. Enquanto aguarda na fila da autorização Suprema, raramente abre o portão e se alimenta de focos de luz solar. Fecha depressa a fresta pro mundo. Ignora-me.
Logo antes da casa dela, encontra-se a tradicional fam(ilha). Marido, mulher, filhas hierarquicamente educadas. Fechados pro mundo. Não interessa se já não ouvem a voz da casa ao lado ou a minha, que mulher sozinha sou, e talvez, por isso mesmo, não precise ser ouvida. Interessa o bem comum da parte interna da casa deles. O de fora é terreno baldio. Aos domingos, tudo isso se repete. Apenas o pai vai à rua varrer o lodo da sarjeta. Varre a dele, a da mulher delgada, que considera idosa. Não varre a minha. A política da boa vizinhança termina no portão da casa alheia. É como se me deixasse um recado. Daqui pra frente, o lodo é teu.
Não gosto de recolher o lodo da sarjeta alheia. No entanto, faço isso para mostrar a ele, à mulher dele, que não cumpriu o dever feminino de varrer a sarjeta, e às filhas hierarquicamente iguais à mãe, que sou uma boa vizinha. Varro o lodo até a esquina. Deixo amontoado, junto às folhas, o lodo que veio parar em frente à minha casa, a pele que habito. Vejo, no material varrido, a matéria fina e sórdida da rua toda, mas deixo lá, até que, no dia seguinte, o varredor de rua recolha o pacote de intrigas, angústias e contradições acumulados na semana e vistos por mim no mesmo lugar, todos os domingos.