Ítaca, minha Ítaca, quando as horas se enchem de sombras e um nó se instala na minha garganta, lembro de ti. Nos dias em que as sereias entoam as suas enganadoras cantigas, a tua lembrança é o que me impede de mergulhar no abismo. Meta primordial, Ítaca é a chegada em casa, a volta ao amor mais caro, o olho a contemplar a paisagem quase perdida. É o descanso após a longa jornada de encantos e asperezas.
Na Odisseia – o poema cantado há quase três mil anos – a ilha de Ítaca é o reino de Ulisses. O herói grego passa dez anos na guerra de Troia e outros dez vagando, perseguido por monstros, alvo da ira de Poseidon, desejado por deusas e mortais. A todos escapa. A lendária viagem de Ulisses, convite a encarar de frente os desafios, empurra a minha nau em direção ao porto seguro, torna-se guia em meio ao nevoeiro e às tempestades.
Ela ensina que o caminho é individual. Os companheiros seguem junto até determinado ponto. Depois trilham as próprias estradas. Alguns a morte leva; outros escolhem roteiros diferentes, novos portos. Chegarei ao fim da jornada inteiramente só, isso é certo. Após o fim do mar, ninguém segue acompanhado. Estarei apenas eu, os meus pensamentos e as experiências acumuladas. As mãos nuas acenando adeuses.
Na rota acidentada é preciso ter os objetivos muito claros. Não os afastar da mente, jamais. Haverá quem chegue com as mãos cheias de flores, chamando a experimentar o esquecimento de Ítaca. Outros oferecerão delícias capazes de subtrair qualquer traço de humanidade. Somente a firmeza de propósito é capaz de mostrar as sutis armadilhas.
Aqui e ali há monstros dispostos a me destruir e a me afastar do objetivo. Por vezes, a minha inabilidade os alimenta, meu orgulho os provoca, minha imprudência me torna vulnerável. Não será culpa deles se me atacarem. É minha a responsabilidade. Eles estão a viver nas suas grutas e cidades, ocultos. Serei eu quem escolherá trazê-los para partilhar a minha existência ou me devorarem a carne.
Aprender com outros homens é essencial. Há os extraordinários, os generosos, e também os canibais, os que vivem sem lei, os selvagens de alma. Cautela, prudência e fidelidade ao objetivo orientam as escolhas. Haverá momentos nos quais será necessário erguer a voz e combater os cruéis, os traidores, os que esmagam os humildes, os dilapidadores dos bens alheios. Ser fiel a si mesmo é inegociável – eis o vero espírito de Ítaca.
Na minha odisseia pessoal há aventuras e festas, celebrações em que se bebe a vida aos borbotões, fartando-se dela, banhando-se nos perfumes, aprendendo sem cessar, descobrindo tesouros. As cenas se sucedem em um caleidoscópio, misturando amizade, lealdade, música, alimentos partilhados, cânticos para louvar a memória que se eterniza.
Não faltam amigos a dar bons conselhos para me domar o orgulho e a relembrar do objetivo maior; e os que se deixam arrastar pela cobiça que tantas vezes traz a morte aos homens. Ítaca é permanente convite a fazer a distinção entre eles.
Ulisses por vezes chora por causa dos sofrimentos que lhe infligem; outras vezes é ele o algoz, o impaciente, o orgulhoso, o cruel, o mentiroso. Tão contraditório, tão profundamente humano. Ele, o homem de mil ardis, o sobrevivente por excelência, o protagonista do Poema em Linha Reta. Ulisses é cada um de nós.
Assim como Ulisses, quantas vezes descerei ao inferno ainda em vida? Nele, encontrarei parte de mim mesma e dos que amei. Nas regiões de densas trevas, além do país dos sonhos, habitam sombras. Elas são vorazes. É necessário ser firme e delas se afastar, embora algumas tenham sido muito amadas no passado.
Haverá momentos de tensão, bem sei, nos quais redemoinhos engolirão toda a água do mar em torno de mim e quase me afogarão no salgado das lágrimas. Outras vezes, propostas sedutoras tentarão me intoxicar de vaidades e tolices, para me afastar de Ítaca, o único lugar em que desejo estar.
Poucas armadilhas são mais irresistíveis que as sereias. O que cantam enquanto passa o barco de Ulisses? Sua glória. Com voz doce, elas se propõem a entoar pela eternidade as habilidades do herói. Ulisses resiste. Amarra-se ao mastro do barco, tampa os ouvidos dos companheiros com cera, para que também eles não sejam seduzidos e se atirem ao mar.
Ao aportar em Ítaca, os tesouros adquiridos estarão ocultos aos olhos dos homens. O que se carrega é a sabedoria de deixar partir as mágoas, a poderosa lição embutida nas perdas, as incontáveis vitórias sobre si mesmo, o espírito indomável que se recusa a sufocar de saudade, agonia, decepção ou tristeza.
Pelo muito que se experienciou, compreende-se que o mundo é farto e múltiplo. Nele, há a hora adequada de ser humilde e a de ser o homem altivo capaz de armar um arco que mais ninguém consegue erguer. Um lugar surpreendente, com ondas púrpuras e aurora de róseos dedos, no qual palavras cruéis passam pela barreira dos dentes e palavras aladas alcançam ouvidos amantes. Nesse mundo, um homem cheio de ardis, dolos e fúria pode ser o herói da história.
No fim de tudo, importa trazer estampada no rosto a bravura diante da adversidade, quando se agarrou a quilha de uma frágil jangada, despiu-se das belas roupas e mergulhou no mar revolto, sem nada além da própria coragem. E, mesmo extenuado, tudo reiniciou, embora trouxesse a boca rachada de sal do mar de angústias e contivesse a custo a vontade de urrar de arrependimento pelos gestos impensados. Fundo aprendizado, rica rota.
Sigo no barco da minha vida pequena e obscura, a singrar o grande mar cor de vinho, entre tremendas tempestades e dias luminosos. Mantenho o leme firme. No fundo dos meus olhos há apenas as cores da minha Ítaca, onde vivem os amores mais caros e os contornos da minha casa inesquecível.