'Vô' Genésio!
Lembro que passei várias vezes debaixo do caixão dele. Literalmente um rito de passagem, ou apenas o melhor caminho que encontrei para transitar na sala lotada. E numa dessas idas e vindas alguém me ergueu para vê-lo pela última vez. Acho que era uma tentativa de explicar para um menino de 7 anos o que estava acontecendo.
Lembro que passei várias vezes debaixo do caixão dele. Literalmente um rito de passagem, ou apenas o melhor caminho que encontrei para transitar na sala lotada. E numa dessas idas e vindas alguém me ergueu para vê-lo pela última vez. Acho que era uma tentativa de explicar para um menino de 7 anos o que estava acontecendo.
Lembro bem do seu rosto sereno, pletórico e com um discreto sorriso, ele estava seguro de encontrar um bom lugar do "outro lado".
A morte do avô Genésio pegou todos de surpresa naquela manhã comum. Morreu de infarto do miocárdio aos 78 anos enquanto fazia a barba.
Foi um baque. Ele era muito querido e sua morte trouxe amigos e parentes de longe para a última homenagem. A casa ficou cheia. Minha mãe conta um fato curioso que aconteceu no velório: Ele tinha um amigo que adorava brincar com assuntos mórbidos. Coisas do tipo: "Genésio, bom dia. Você ainda está vivo”? E o outro respondia: "Você está branco igual defunto, hein".
E as brincadeiras com esse tema eram antigas e recorrentes entre eles. Na semana anterior ao falecimento, esse amigo entregou para minha avó um caixãozinho de madeira entalhado e pediu que ela o entregasse ao Genésio, mas ela achou muito agressivo e jogou fora imediatamente. Quando esse senhor, também já idoso, soube do falecimento do meu avô, ele ficou transtornado achando que sua brincadeira pudesse ter causado a morte do amigo. No velório ele chorava muito e repetia para todos: "eu matei o Genésio, eu matei o Genésio".
Minha avó dizia insistentemente que o “presente” não havia sido entregue e que o Genésio não ficou sabendo. Foi uma luta para convencê-lo. Foram semanas cabisbaixo e muito triste.
A imagem do avô Genésio é bem viva na minha memória, um senhor de cabelos brancos que usava chapéu Panamá, óculos de armação grossa, camisa de botão por dentro da calça e botina. Era querido por todos. Tinha as mãos calejadas do trabalho, mas uma serenidade de quem observava tudo e compreendia além do senso comum.
Era honesto, distinto e apaixonado pela avó Odila. Chorava de saudade quando ela viajava. Gostava de festa, música, reunir os filhos, conversar com os amigos e de escrever.
Ele registrava coisas do cotidiano, fatos marcantes da família e enviava cartas para quem estava longe. Seus textos eram recheados de bom humor e sutilezas. Era discreto ao repreender, e gostava de dizer que "bastava bater na cangalha que o burro entendia".
Ele brincava com minha mãe na 4ª gravidez, dizendo que ela era igual circo de interior, que todos os anos faz uma propaganda enorme de novidades, mas o espetáculo era sempre o mesmo. Dizia isso para brincar com o fato da mãe só ter tido filhas até aquele momento, mas nessa 4ª gestação eu nasci. Foi a primeira vez, de várias, que o contrariei.
Ele curtia os netos, colocava as crianças, ainda bebês, em pé equilibrando na sua mão. Fazia maior sucesso, mas gostava também de exercer sua autoridade, exigindo respeito e obediência. Foi nesse 2º quesito que eu e ele começamos a nos desentender. Eu era um menino agitado e criado com liberdade e autonomia. Com uns seis anos eu já dominava bem os arredores da casa, tinha amigos, compromissos e responsabilidades em fazer bagunça. Não tinha muito tempo para a sabedoria do “Vô” e quando eu o desobedecia ele não se conformava e ficava bravo, afinal todos os outros netos o reverenciavam. Mas de longe, eu o enxergava e aprendia, lembro bem dele cuidando da horta do quintal com maior zelo, tirava os ovinhos de borboleta das folhas da couve, cuidava do pé de limão e da goiabeira que um dia foi dada por ele, de papel passado, para minha irmã Fabíola. Quando ele vendeu a casa para a tia Luzia, foi comunicado que o pé de goiaba do quintal era da Fabíola, que por sua vez, não abria mão de exercer seu direito sobre o presente do Vô Genésio. Ele descascava cana com maestria e depois distribuía para todos. Formava fila de netos esperando os gomos de cana.
Com o passar do tempo e ouvindo as pessoas falarem com carinho e respeito dele eu passei a compreendê-lo e admirá-lo cada vez mais. Não tive tempo de mostrar para ele que eu não era tão cruel quanto ele achou, mas um dia, quem sabe, haveremos de nos encontrar e depois de um longo abraço nos entenderemos com certeza.
Hoje, cada dia mais, descubro nossas afinidades e fico muito orgulhoso quando minha mãe ou minha irmã Renata fala que eu pareço com ele.
Tenho muito orgulho desse meu avô apaixonado que criou seis filhos, curtiu muitos netos e viu a chegada do bisneto Frederico. Essas são algumas lembranças que não se podem perder.
E para terminar: "Não elogie o burro antes de passar no atoleiro", dizia o avô Genésio.