Para o cinéfilo poder voltar às salas de cinema após mais de dois anos de confinamento é uma experiência de júbilo e contentamento. E esse retorno é um duplo prazer quando se trata de assistir à adaptação de um maravilhoso clássico da literatura para o formato audiovisual.
A transmutação das “Ilusões Perdidas” (Honoré de Balzac, 1843) para as telas (em 2021) é uma experiência que deu certo porque respeita o texto original e dialoga bem com o imaginário das gerações informadas pelos audiovisuais. Entretanto, o seu grande mérito – para o melhor e para o pior — reside na sintonia com o espírito do tempo do sec. XXI, em que a vida parece governada pela vontade de poder sem limites, o culto exacerbado do dinheiro e a intolerância por parte das classes dominantes. Saí do cinema siderado, sem pensar direito, mas ainda emocionado, aqui traduzo minhas primeiras impressões. Talvez seja conveniente apresentar a sinopse do filme:
“Lucien sai do pequeno vilarejo onde cresceu rumo a Paris, onde pretende se tornar um poeta reconhecido. Ele recebe a ajuda de sua amante, e acredita que, em poucas semanas, encontrará editores dispostos a publicar seus textos. No entanto, descobre na capital um universo de manipulações e subornos, onde apenas a lei do dinheiro determina qual artista será valorizado. Contrário a esse sistema a princípio, Lucien passa a tolerá-lo e a jogar com as regras. Aos poucos, converte-se num dos homens arrogantes e cínicos que sempre detestou”.
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O filme ajuda a pensar sobre a “minima moralia” (a vida lesada) que rege nossos tempos sombrios atravessados pela falta geral de solidariedade, em que o amor parece algo piegas, uma mera expressão retórica, onde imperam os afetos tristes e regressivos, em que se instala a “cultura do ódio” (dentro e fora das mídias), onde o diferente surge como ameaça, como inimigo e o “outro” aparece como suspeito.
Balzac é perito em revelar o teatro social, a “comédia humana”, como uma rede de vilania e malvadeza. Há algo do “bom selvagem” (Rousseau) na sua narrativa, para quem “o homem nasce bom, mas é corrompido pela sociedade”. Mas talvez essa seja uma concepção simplista, pois há os que defendem a tese de que “o homem é o lobo do homem” (Thomas Hobbes).
Há ali uma frase em que Balzac resume um diagnóstico do tempo em que viveu: “teatro da sociedade, onde as piores pessoas têm os melhores lugares”. Difícil não lembrar o Brasil atual, no que concerne aos tóxicos poderes dominantes e suas expressões no contexto recente.
Conviria destacar que “Ilusões Perdidas” pode ser examinado como uma referência para se refletir sobre alguns aspectos da dita “imprensa marrom” ou “jornalismo sensacionalista” que reina nos vastos domínios da comunicação contemporânea. Quando imperam a “fake news” e a experiência da “pós-verdade”. Desde lá, no sec. XIX, Balzac na literatura (e Giannoli, no filme), mostra-se o lado podre da “notícia como um produto à venda”, contrariando o conceito da Imprensa como uma experiência ao lado da Ética, da justiça, da vida democrática e republicana.
Mas infelizmente, na idade mídia, este campo tem-se mostrado como lócus privilegiado das barganhas, dos oportunistas de plantão, arrivistas, aproveitadores. Relembro – de chofre – uma outra narrativa, igualmente célebre, O Fausto (de Goethe), sobre um homem que vendeu a alma ao diabo para obter vantagens. Relembro ainda “O Senhor dos Anéis” (Tolkien, na literatura / Jackson, Walsh & Boyens, no cinema), focando as desordens e deformações do caráter dos sujeitos que detêm o poder absoluto.
Esse grande e belo filme me deixou pensando: existiria saída para a humanidade em um mundo sem princípios, sem afetos nobres, sem valores elevados, onde (quase) todos parecem ter virado “patos amarelos desnorteados, gados e miquinhos amestrados”?
▪ Em exibição no Festival de Cinema Francês Varilux, Mag Shopping e Manaíra Shopping