Já contei mil vezes como conheci Dom José Maria Pires ( 1919-2017 ), o arcebispo da Paraíba de 1965 a 1995, mas – como o tema exige - lá vem a milésima primeira:
por volta de 73, 74, apresentei aos donos do circo cultural - circo, mesmo, destinado a concertos, teatro, cursos, etc - que havia próximo ao final da Ruy Carneiro - e que eram o maestro Pedro Santos, o escritor Adalberto Barreto e o produtor Eduardo Stuckert - um texto teatral em que os quatro hipotéticos evangelistas (ante um mundo sem líderes, mas em que havia a espera messiânica dos judeus), criavam Cristo, assimilando o melhor do pensamento platônico, que dominava os intelectuais de todo o Império Romano. Disseram-me que topariam a coisa se a peça fosse apresentada na semana santa e se eu aceitasse um debate, na noite de estreia, com Dom José Maria Pires. Fomos ao homem, que nos recebeu com seu enorme sorriso, dizendo que adorava aquele tipo de ousadias – como as de “Jesus Cristo Superstar”, d “O Estranho Caminho de Santiago” e as do comunista Pasolini em “Evangelho Segundo Mateus” - e que eu o procurasse ( era uma sexta-feira ) na segunda seguinte, quando já teria lido a peça, para acertar tudo . Na segunda, porém, eu o encontrei abatido. Disse-me que não se julgava competente para o debate:
- Você me provou que o que eu tinha como um tesouro não passa de um baú cheio de latão pintado de amarelo.
Impactante!
Espetáculo cancelado, publiquei meus dois primeiros romances, o “Israel Rêmora” e, depois, “A Canga”. Em 79 lancei o terceiro: “A Verdadeira Estória de Jesus” pela Ática, de São Paulo, com a narrativa que levei de volta ao teatro em 88, num espetáculo com o mesmo nome.
Bom.
Na agência-centro 1817, do Banco do Brasil, eu tinha um colega, o Barbosa – criador do projeto e planta de minha casa, intelectual com cinco anos de seminarista em Roma. Era católico a ponto de se chocar ao me ver rasgando uma carta em que Alceu de Amoroso Lima – conhecido como Tristão de Athayde – me dizia que o ser humano não tinha capacidade de discutir “os mistérios de Deus”.
- Que é isso, Solha!
– Cara, é o mesmo papo de Paulo apóstolo e de Santo Agostinho!
Pois bem: um dia o Barbosa parou ante meu birô e me disse que Dom José estava atravessando uma crise.
- De quê?
- Religiosa.
- “Bispo em crise num país em crise”: isso dá um romance.
Fui ao Seminário Arquidiocesano de Miramar, onde Dom José passava uma parte do tempo. Como eu não marcara audiência, surpreendeu-se – em seu birô - com minha aparição na porta de seu gabinete. Mas se levantou prestativo, apertou-me a mão, convidou-me a sentar e
- A que devo a honra?
Falei-lhe da ideia do livro e lhe perguntei se eu poderia tirar férias do banco e acompanhá-lo durante um mês, pra me inteirar de seus hábitos, ideias, coisas do tipo.
- Não. Você vai escrever pra quem já sabe das coisas. Por que não faz um cordel!
- Não sou poeta, Dom José.
Foi à estante, pegou uma brochura e me mostrou que já era personagem de um autor mineiro:
- “Romanceou”. Distorceu tudo!
Aí se deu que em 79, sem me lembrar nem por um momento daquela recomendação, quando o maestro Kaplan me inteirou do movimento de reforma agrária não-violento, no latifúndio de Alagamar, Itabaiana, sobre o qual queria compor uma cantata para o coral da UFPB, eu lhe disse:
- É o caso de versos de cordel. Com discursos em martelo galopado, gemedeiras para quebrar as empáfias. Vou pegar o material disponível na arquidiocese, como recortes e o livro “Do Centro para a Margem”, do arcebispo, montar o contexto e entregá-lo a um repentista, cantador – como Otacílio Batista ou Oliveira de Panelas.
- Não sei – Kaplan disse. - Amanhã cedo parto para Viena, presente de 15 anos de minha filha argentina, e – quando voltar, dentro de duas semanas, preciso disso pronto.
- OK.
Aí, com a coisa toda na cabeça, me perguntei:
- Será possível que com lápis e papel na mão eu não seja capaz de fazer o que Oliveira de Panelas faz no improviso?
Marquei sete linhas, rimas da segunda com a quarta e a sétima, e entre a quinta e a sexta, comecei pelo começo:
- Começa com o Pró-Terra / financiando o gato e a cana. / As terras se valorizam, / negociata se dana. / Lavouras são destruídas, / famílias pobres varridas, / a ambição fica insana!
- Consegui!
- Consegui!
Os mandamentos da Não-Violência:
- Primeiro, nunca matar./ Segundo, jamais ferir./ Terceiro: estar sempre atento. / Quarto: sempre se unir. / Quinto: desobediência às ordens de Sua Excelência / que podem nos destruir!
- Isso era tremendamente novo.
Não-violência. Diz a Wikipédia:
(do sânscrito: transl.: ahimṣā , "não violência", "ausência de desejo de ferir ou matar") é a prática pessoal que surgiu da crença de que ferir pessoas, animais ou o meio ambiente não é necessário para se conseguir vantagens. O conceito também possui elementos ativistas, como quando é usado como instrumento de mudança social. Neste sentido, o termo é, comumente, associado à luta pela independência da Índia, liderada por Mahatma Gandhi.
Claro que isso... alterava isto, do evangelho:
- "Vós tendes ouvido o que se disse: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, digo-vos que não resistais ao mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quer demandar-te em juízo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e se alguém te obrigar a ir carregado mil passos, vai com ele ainda mais outros dois mil. Mateus, V: 38-41)"
O mais grave:
- Dai a César o que é de César.
Ali estava – foi o que concluí – a razão da... crise religiosa de Dom José. Isso me ficou mais claro quando vi João Paulo II aposentando seus bispos envolvidos com a Teologia da Libertação, a Igreja ao lado dos Oprimidos, como Dom Hélder, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga, ... Dom José Maria Pires. Frei Betto definiu esse Papa, “ como um homem que tinha o coração de esquerda e a cabeça de direita”. Era o cristianismo assumido pelo Imperador Constantino por ser útil à “Pax Romana”.
“Latão pintado de amarelo”
fora uma expressão bastante forte.