Fiz o Exame de Admissão ao Ginásio no Lyceu, no final de 1963, ainda no tempo de provas escritas e orais. Estudando no Lyceu de 1964 a 1970, uma vez ou outra eleito Presidente de Turma (cada turma ou classe elegia seu representante junto ao Diretório Central), seria inevitável o envolvimento com política estudantil. O movimento estudantil era um imã poderoso que atraía todo mundo, inclusive o sujeito mais desligado em matéria de política, que muitas vezes se via correndo da polícia pelo simples fato de estar no protesto acompanhando a namorada.
O problema é que a militância, formada em sua quase totalidade por adolescentes como eu, acabava se deparando com uma questão bastante delicada, situação que não podia ser discutida com ninguém, muito menos com os pais, teria que ser uma decisão rigorosamente solitária: lutar contra a ditadura, mas entrando para um partido clandestino. Um dilema e tanto! Muitos refletiam mais profundamente sobre a realidade e viam no ingresso em um partido clandestino a melhor maneira de atuar no movimento de forma mais organizada, sistematizada, portanto mais eficaz.
Foi diante desse impasse que tive a curiosidade de ler O Capital. O primeiro obstáculo foi ter acesso à obra de Marx. Ela fora apreendida em bibliotecas públicas e particulares, e encabeçava a lista dos livros proibidos pelo regime. Um companheiro começou a me repassar fascículos, na verdade apostilas datilografadas. Escondido dos familiares e amigos, lia o material com avidez, muitas vezes “refugiado” na Bica, mesmo sem ter certeza de que aquilo era de fato o texto original.
Veio então o problema maior: minha capacidade intelectual era limitada para compreender certas nuances d´O Capital, obra extensa, profunda, complexa, na época sem difusão no Brasil, por motivos óbvios. Se você não encontrava Marx nas livrarias e bibliotecas, também não tinha muita chance de encontrar alguém disposto a discutir a obra dele. A pronúncia do nome do autor era uma blasfêmia, motivo de prisão. A descontinuidade no recebimento do material e restrições de todo o tipo, muito comuns naquele momento, me fizeram desistir do projeto. Resultado: nunca li O Capital, e a essa altura da vida não pretendo ler.
Talvez por causa da pouca idade, a nova canção dos Beatles me seduzia mais do que versões mimeografadas de textos atribuídos a Che Guevara ou Marighela, sonho de consumo de nove entre dez militantes políticos. Entre Rosa Luxemburgo e Mao Tse Tung, pendia mais para a polaca-alemã. De quebra, curtia Bossa Nova, Tropicália, a novidade d´Os Mutantes, e torcia o nariz para a discursiva e monocórdica ‘Pra não dizer que não falei de flores’, do conterrâneo Geraldo Vandré, até hoje “hit” nas manifestações de rua pelo Brasil afora.
Não era filhinho de papai e já trabalhava feito burro de carga, já que, modéstia à parte, era um excelente datilógrafo, mão de obra disputadíssima naquela época. O fato é que nunca fui protagonista, militante de linha de frente, tal como Marcus Paiva, Lúcio Soares Lima (Toinho Help), Washington Rocha, Eduardo Ferreira de Lima (Batata), Zé Emilson Ribeiro, Zé Maria, Zé Altino, Eldson Ferreira e mais três que faço questão de destacar: Antônio Carlos Campos, Rubens Pinto Lyra e Antônio Carlos Duques, este, rapaz esguio, carismático, intelectual, grande orador. Antônio Carlos Duques era para mim a personificação de Lênin, no Lyceu daqueles anos.
Além do trabalho duro a que se dedicavam desde cedo os rapazes de família pobre e numerosa, como era o meu caso, o que de certa forma contribuía para nos afastar da militância mais fervorosa, o velho Jean-Paul Sartre já havia me conquistado, defendendo com unhas e dentes a liberdade e a subjetividade dos indivíduos. Hoje, vejo que Sartre era o meu guru. Apesar de garoto, lia Sartre com bastante interesse. Costumava frequentar a vizinha FAFI – Faculdade de Filosofia e me servia dos livros que os universitários me emprestavam. Depois, devo confessar, fui literalmente catequizado por Albert Camus, que faz a minha cabeça até hoje.
"O Homem está condenado à liberdade" é uma das mais famosas citações do marido de Simone de Bouvoir. Simpático desde cedo ao existencialismo, nunca voltei a me interessar pelas coisas do marxismo, apesar da fartura de documentos políticos que me vi na contingência de ler e que me chegavam às mãos, junto com slogans e palavras de ordem, que surgiam do nada e ganhavam imediatamente as multidões na rua.
Mesmo admitindo não ser um crítico confiável, pois sequer li O Capital totalmente, pelo pouco que li, ainda hoje penso que Marx não esgotou certas questões inerentes ao homem, resultando daí, ao que tudo indica, o fracasso do chamado socialismo real. Com todo o respeito, essa falha, digamos assim, na teoria marxista, agravada pelo “centralismo democrático”, pode ter facilitado o surgimento de ditaduras que, contraditoriamente, em nome do chamado interesse coletivo, da maioria, acabaram sufocando impiedosamente a liberdade individual e as chamadas minorias.
O que me deixava mesmo com um pé atrás em relação aos partidos clandestinos era o tal “centralismo democrático”, prática política que, quando não transformava a decisão dos dirigentes em dogma, facilitava o surgimento de alas, facções, dissidências, o que deixava o movimento com aquele jeitão de Torre de Babel (o PT tem a quem puxar).
Ficava impressionado com o espírito de renúncia e até com o heroísmo de alguns companheiros que se diziam marxistas-leninistas e já pertenciam a algum partido clandestino. A repressão era violenta, em casa e na rua. Claro que todos deveriam se preocupar com a segurança, mas havia certa paranóia. Alguns exageravam, se comportando como se pertencessem a uma ordem religiosa secreta. De uma hora para outra, companheiros mudavam seus hábitos, o modo de vida, as amizades, os amores. Isso me assustava bastante.
Com a opção dos militantes mais aguerridos pela luta armada, aconteceu o famoso racha das forças que faziam oposição ao regime. Foi aí que decidi me afastar completamente do movimento estudantil. Meu grupo fez uma última reunião no sítio do Seminário (onde já funcionava o Colégio Estadual do Róger) e um dos companheiros chegou a me acusar de “burguês alienado”, no momento em que me manifestei contrário à luta armada, alegando, basicamente, falta de condições objetivas para empreitada tão perigosa e radical.
Às vezes penso que o que a Comissão da Verdade fez, em certa medida, com muita justiça, foi homenagear alguns adolescentes contemporâneos meus, que tiveram a coragem de lutar contra a ditadura, mas ingressando em um partido clandestino.
Já em 1970, quando fui aprovado no vestibular de Direito na UFPB, não tinha mais nenhuma ligação com o movimento estudantil. A partir daí, ironicamente, comecei a namorar uma jovem do interior que estudava na capital e residia na casa do tio, político influente, uma das maiores lideranças da Arena na Paraíba, com quem, diga-se de passagem, estabeleci grande relação de amizade e respeito.
O tempo passou, tudo passou. Os contemporâneos que ainda estão vivos são todos setentões. Os ensinamentos da JEC — Juventude Estudantil Católica — e aquela conversa romântica de “amar ao próximo e repartir o pão” ainda entusiasmam alguns.
Hoje, tentando levantar as conseqüências daquilo tudo, acho que restaram o jeito meio existencialista de uns, a conduta meio anarquista (anarquista no sentido filosófico da palavra) de outros, e o pragmatismo, por assim dizer, da grande maioria, o que fez com que alguns se tornassem ricos (não é o caso dos citados aqui). No mais, foi massa o movimento estudantil. Ou melhor, fui massa no movimento estudantil.