O sentimento religioso provavelmente surgiu nos tempos primitivos da humanidade, a princípio baseado no medo do desconhecido: o medo da noite com os sons que não sabiam explicar, o medo causado pela perda de seus entes queridos, associado à falta de explicação para todos os fenômenos que não conseguia explicar: o trovão; o raio matando pessoas e outros seres; e todos os outros fenômenos da natureza.
À medida que evoluía, o homem foi encontrando explicações para todos esses mistérios e foi se despindo mais do espírito religioso. Mas ainda conserva muitos medos primitivos.
Isso fez com que desenvolvesse o sentimento religioso. Passou a ser, então, manipulados por outros humanos, que até hoje tiram vantagens desse sentimento para explorar os mais crédulos.
Hoje, modernamente, o medo é um fator menor para a crença, que se manifesta mais racionalmente.
Ao longo do desenvolvimento, com a formação das civilizações, surgiram as diversas religiões. E com elas, as formas de manifestar o sentimento religioso, principalmente usando a arte e a música.
Em todas as religiões podem ser encontradas manifestações musicais, usadas para exprimir o amor por aquela crença. Hoje em dia algumas dessas músicas são... Sofríveis, para não dizer mais. Porém a maioria é composta por manifestações do belo.
Por exemplo: as músicas produzidas por evangélicos americanos são maravilhosas, ritmadas e muitas vezes transcendem o sentido para o qual foram destinadas. As Aleluias, então, se superam em beleza.
Dessa corrente musical religiosa americana destacamos alguns artistas, com algumas de suas obras mais destacadas. Estudioso do tema, Silvino Espínola citou algumas pérolas. Comecemos por Sister Rosetta Tharpe.
Precussora do roque, Sister Rosetta uniu esse ritmo ao gospel e o blues, desfilando por todos com maestria invejável. Destaque para Jericho .
Depois Silvino enviou estas preciosidades de Louis Armstrong: Go Down, Moses , um animado jazz gravado no álbum Louis and the Good Book, gravadora Decca, de 1958. E esta outra canção, outro delicioso jazz religioso incluído no álbum, Ezekiel saw de Wheel .
Outro grande músico americano que interpretou canções religiosas foi Trini Lopez. Mais conhecido por ter divulgado o ritmado roque de origem mexicana La Bamba, dançado por jovens de todas as idades ao redor do mundo, Trini Lopez gravou uma bela música religiosa em ritmo de roque, chamada Michael Row the Boat Ashore .
Em 1963 a banda jamaicana The Melodian gravou a música religiosa Rivers of Babylon em ritmo de reggae, que passou despercebida pelo mundo musical.
Em 1978 a banda euro-caribenha Bonney M gravou pela gravadora Hansa Reccords a mesma música, Rivers of Babylon, desta vez em ritmo discô, que disparou nas paradas de sucesso dos Estados Unidos e do mundo. Espetacular! O ritmo é tão gostoso que nem parece música religiosa.
São todos bons exemplos de que é possível se manifestar religiosamente por músicas de muito bom gosto, como visto nos religiosos dos Estados Unidos. Lamentavelmente, não podemos dizer o mesmo em relação à produção musical de outras correntes religiosas daqui do Brasil, sejam evangélicas ou de outros credos.
Por outro lado, existem muitas canções brasileiras religiosas, algumas até mescladas com o sentimento de protesto. Uma dessas canções, das mais belas, é Procissão, de Gilberto Gil.
O mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras, com muita justiça graças à poesia musicada de sua obra, composta pelos milhares de canções que completam a sua musicografia, Gil lançou Procissão em 1965, depois gravada no seu primeiro álbum Louvação, lançado pela Phillips em 1967, onde foi acompanhado por Os Mutantes.
Procissão reúne poesia e religiosidade com forte conotação de protesto contra a exploração do sertanejo, eterna vítima da seca endêmica do nordeste.
Os quase dois milênios de cristianismo produziram belas manifestações musicais, especialmente as clássicas, sinfônicas ou corais. Como, por exemplo, as Ave Marias.
Ao ouvir isso, imediatamente evocamos a Ave Maria de Schubert e a Ave Maria de Gounod/Bach, que estão entre as maiores expressões de manifestação musical religiosa no Ocidente, fartamente tocadas em casamentos e outras solenidades.
A primeira foi composta pelo compositor austríaco Franz Peter Schubert no ano de 1825, dentro da obra Canções de Sir Walter Scott. Inicialmente composta para a tradução de um poema de Sir Walter Scott, só muito depois é que recebeu a letra em latim que conserva até os dias de hoje, tornando-se um dos hinos do cristianismo.
Talvez um pouco menos popular que a Ave Maria de Gounod/Bach, a Ave Maria de Schubert tem sido objeto de grandes execuções, como é o caso de Ellens Gesang III . A popular Orquestra de André Rieu também lhe dedicou uma belíssima execução: .
E foi com a Ave Maria de Schubert que Walt Disney fechou o seu lendário filme Fantasia (1940).
A Ave Maria de Gounod/Bach, por sua vez, é muito mais divulgada que a de Schubert. Segundo o arquiteto e musicista Germano Romero, profundo conhecedor da música erudita, o compositor Johann Sebastian Bach, luterano convicto e autor da magnífica Jesus Alegria dos Homens , compôs inicialmente o belíssimo Prelúdio em Dó Maior, em 1772, para a obra O Cravo Bem Temperado.
Embora este prelúdio atinja o fundo da nossa alma, não há registro de que ele tenha tido inspiração religiosa para ser composto. No entanto, ouvindo a música nós concluímos que ele deve ter tido no mínimo inspiração divina, tamanha a beleza. Mas, por que Gounod/Bach?
Ainda segundo Germano Romero, no ano de 1859 o compositor francês Charles Gounod sobrepôs uma melodia de sua autoria sobre esse lindo prelúdio de Bach e compôs a sua Ave Maria. Que fique claro que Gounod não plagiou a música: ele aproveitou o prelúdio como base e deu-lhe uma nova feição, em contraponto com sua Ave Maria.
A princípio ele chamou essa música de Meditação, e dedicou à sua namorada. Diz a história que Gounod compôs e abandonou a melodia, tendo esta posteriormente sofrido várias interferências até chegar à forma como é executada, atualmente, inclusive com a letra em latim. O que importa é que ambas as Ave Marias, de Schubert e de Gounod/Bach, são lindas. E invariavelmente muito bem executadas.
De sua parte muito mais tocada, principalmente nas cerimônias de casamento, a Ave Maria de Gounod/Bach pode ser encontrada nas mais variadas versões que se possa imaginar: A versão clássica lindamente executada por Salvatore Marletta .
Cantada por Kimmy Scotta, ao som da Orquestra de André Rieu .
Ou num show de adaptação para o bandolim, feita por Jorge Aragão .
No nosso país, todos os fins de tarde, exatamente às seis horas, muitas rádios (principalmente as do interior do Nordeste) param a sua programação e tocam uma Ave Maria. É a hora sagrada do Ângelus, tradição bíblica do momento da Anunciação feita pelo Anjo Gabriel da gravidez de Maria.
No Brasil a música religiosa deu muitos frutos, cada um influenciado pelas características regionais. Como é o caso da Ave Maria Sertaneja , música tìpicamente nordestina de forte motivação religiosa. Sendo uma toada de autoria de Júlio Ricardo e O. de Oliveira, a música foi gravada por Luiz Gonzaga em 1964.
Mas talvez a melhor Ave Maria brasileira, a mais bonita e de sentido mais forte seja mesmo a Ave Maria no Morro, de Herivelto Martins:
Barracão de zinco
Sem telhado, sem pintura
Lá no morro
Barracão é bangalô
Lá não existe
Felicidade de arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já vive pertinho do céu
Tem alvorada, tem passarada
Alvorecer
Sinfonia de pardais
Anunciando o anoitecer
E o morro inteiro no fim do dia
Reza uma prece ave Maria
E o morro inteiro no fim do dia
Reza uma prece ave Maria
Ave Maria
Ave
E quando o morro escurece
Eleva a Deus uma prece
Ave Maria
Em 1940 eles passaram a atuar na Rádio Clube do Brasil. Em 1942 o Trio de Ouro gravou pelo Selo Odeon a belíssima Ave Maria do Morro .
No mesmo ano Herivelto e Dalva de Oliveira casaram-se, iniciando uma existência a dois de muita paixão e muitas brigas, que terminariam em baixaria por parte dele, segundo Ruy Castro em seu livro A Noite do Meu Bem, (Companhia das Letras, 2015). Mas isso é outra história.
De motivação social, porém com inspiração religiosa, Ave Maria no Morro é uma linda música de letra curta porém profunda. Ela foi sucesso nas rádios brasileiras durante anos, e deu muitas “crias”, dada a sua beleza.
Uma delas é a inusitada execução feita pelo cantor italiano Zuchero Fornaciari. Linda!
Outra é cantada num dueto dos tenores Luciano Pavarotti e Andréa Bocelli.
Também muito bela é a versão cantada pelo conjunto musical composto por filhos e netos de Nelson Gonçalves . A desonrosa exceção é uma versão horrorosa, uma verdadeira execução, no sentido de assassinato, cometida por Eduardo Araújo lá pelo início dos anos 1970. Mas, nem tudo é perfeito. É uma questão de gosto.
Até hoje me lembro da cena singela de Ângela cantando, acompanhada ao som da gaita do saudoso e muito querido Roberto Lira, e do violão de Roberto Serrano, o nosso famoso Bob Serra.
Um momento de muita ternura, que jamais esquecerei.
links para músicas mencionadas: