O andar arrastado, de pés sem cavas, levantava uma poeira fina que ia tornando fantasmagórica a imagem do velho homem, ante a reverberação ótica do pino do meio-dia. No verão, a estrada por sobre a parede da barragem, repisada por bichos e gentes, costumava soltar aquele pó amarelado, quase místico, que recobria a todos, com a sem-cerimônia de um manto real.
As cabaças, abastecidas no porão da represa com algumas dezenas de preciosos litros d’água, penduradas no pau de aroeira roliço, atravessado no trapézio nu, retesado e caloso, balouçavam obedientes à cadência marcial das passadas, ressumando gotículas prateadas de uma chuva inútil, que evaporava ao rés do chão.
Na cintura, um retraço de cordame segurando os calções de um madapolão mole, furta-cor de tão gasto, fazia barreira ao suor que lavava, abundante, o torso habituado aos grandes esforços. Ainda que sem um grama sequer nas costas, ninguém alcançaria a marcha forçada daquele conjunto de pesos e contrapesos, equilibrado como uma equação newtoniana, flutuando em meio à quentura que emanava de toda parte, a quentura sólida do semiárido. O embornal de couro de boi, presente de Padrinho, com a cinta larga atravessando, desde o ombro esquerdo, todo o tórax, até à cintura, completava os paramentos.
Um pouco mais atrás, num trote ritmado, o cachorro vira-lata pedrês, miúdo e arrepiado, arquejante, acompanhava os passos do dono com desinteressada atenção. Conhecia cada seixo, cada lagartixa, cada pardal daquele caminho de roça. As nuances aromáticas das suas urinadas frenéticas voluteavam em ondas familiares, demarcando o território e imprimindo ao trajeto toda a segurança de que o grupo necessitava. Não havia o menor sinal de perigo.
Meio sentado numa pedra, desafiando a gravidade no trecho em que a parede do balde mais se inclinava em direção à linha d’água, o menino alourado de pele tostada e cabelos espessos assistia àquele cortejo, com os olhos brilhantes, mastigando um talo do capim-santo que, cintilante, atapetava a encosta íngreme.
Logo que os olhares se cruzaram, os dentes do homem, de uma brancura polar, emergiram num largo e genuíno sorriso, como se um copo de água fresca se lhe apresentasse alguns metros adiante. O cão, farejando o ar e agitando a cauda descarnada, apressou o passo, dando pequenos rodeios, levantando mais corpúsculos da terra cor de ouro. A procissão chegara ao auge nesse encontro e o menino, ágil que nem filhote de jaguatirica, levantou-se de um pulo e correu para a tropa, mirando o embornal.
— Trouxeste para a gente o quê?
O homem parou lentamente, deu um longo suspiro e, dobrando os joelhos com o corpo ereto, descarregou no chão os recipientes, pousando sobre estes, cuidadosamente, a trave de madeira: o carregamento era por demais valioso.
— Eu já disse que essa encosta escorrega e quando vosmecê cuidar... tchibum! Está nadando com as piabas! – disse, rindo ainda mais e entregando o embornal ao menino, enquanto o cachorro, excitado, soltava breves latidos esganiçados.
O menino desenlaçou, ávido, a presilha e vasculhou o conteúdo do bisaco com o rosto quase enfiado na abertura, sorvendo o cheiro de couro curtido. Retirou de lá um embrulho quadrado, coberto com folha de bananeira atada com sisal, e outro maior, irregular, cujo conteúdo achava-se enrolado num pano fino, manchado. Um odre de pelica, fechado por uma rolha, continha a água de beber.
— Rolinha assada ou nambu? Será uma costela ou um pernil? Fala logo! — perguntou o menino, sem abrir os invólucros, mas com a saliva escorrendo das comissuras dos lábios.
— Vamos comer, seu cabrito guloso, é melhor do que adivinhar! — Respondeu o homem com ternura, recolocando a trave de madeira nos ombros e amarrando as cabaças nos cipós.
Seguido pelo cão, descendo a parede no ângulo oposto à lâmina do açude, com juvenil habilidade a despeito dos compridos anos de vida rural, o homem tomou o sentido de um umbuzeiro centenário, sob cuja copa, tão desgrenhada quanto frondosa, dormitava um bando de patos de penugem preta e branca, com os bicos chatos enfiados nas asas.
Na sombra fresca e acolhedora, a matilha acomodada se preparou para a refeição: o homem passou as mãos, à guisa de limpeza, pelo solo do espaço preferido, bem sombreado, e sentou-se com os membros inferiores recolhidos de um só lado do corpo, parecendo absolutamente relaxado. O menino, impaciente, abancou-se também, cruzando as pernas sob si. E o animal, depois de enxotar os patos com canina autoridade, deitou-se ao redor, como que fechando o círculo, cônscio da importância da sua presença naquele convescote.
Depois de breve ablução das mãos e rostos com a água retirada do odre, o primeiro pacote foi ritualisticamente aberto sobre o relvado, mostrando uma rapadura média, cor de argila, cujo cheiro marcante, agridoce, do melaço que lhe originara acendeu as narinas dos comensais, fazendo o menino arregalar os olhos e o cachorro esticar as orelhas. Como se não bastasse, torresmos de castanha de caju assada sobressaiam aqui e ali da superfície suculenta do petisco de cana-de-açúcar.
Sem tocar na rapadura, o homem desenrolou cautelosamente o segundo embrulho, como quem manuseia uma preciosidade. Para decepção do menino, revelou-se uma pasta disforme esverdeada, da qual minava um líquido amarelo. A repulsa fê-lo recuar, arrastando-se para trás sobre os joelhos dobrados.
— Que é isso?
— É uma coisa que eu preparei para vosmecê comer hoje, antes da rapadura — respondeu o homem com os olhos bem fixos nos do menino.
— Como lá essa coisa de jeito nenhum! — zangou-se o menino, já fazendo menção de levantar-se.
— Ouça-me — retrucou gentilmente o homem - Está na hora de vosmecê aprender que os animais de Deus são nossos irmãos e que existem outras maneiras de matar a fome sem precisar deitar rês nem criação. Matute aí vosmecê o que os bichinhos sentem quando a marreta avoa no toutiço deles, derribando-os sem dó nem piedade. Ou quando a pedra de funda abre a cabecinha da codorniz, quebra a asa da arribaçã... E ainda o peixinho endoidecendo pelo ar, com o anzol espetado no céu da boca?
Fez-se silêncio e um bem-te-vi voejou por sobre o trio, pousando alguns metros adiante, numa galha abaixada da árvore. Pouco mais, seu par fez o mesmo percurso, e ambos, em plateia, quedaram-se a assistir a conversa. Os patos retornaram em fila indiana, acomodando-se perto do tronco e longe do cachorro. Uma vaca mugiu alto no horizonte, decerto exortando sua cria. O sol atingira o zênite e o dossel do generoso vegetal ofertava abrigo a todas as criaturas, livrando-as da inclemência do astro-rei no seu clímax. O homem prosseguiu.
— Esperei com paciência vosmecê sair do mimo e ficar mais taludo para lhe dizer isto: não se come carne de bicho vivo nenhum. Os ovinhos e o leite, desde que não careça do sacrifício ao ente e à ninhada, pode ser; tem a hora de recolhê-los sem prejuízo. Mas matar para comer? Não se pode... Não nos é permitido... — e meneou a cabeça, com uma manifestação pia nos olhos cansados.
— Agora, queria que vosmecê sossegasse e provasse o que eu preparei, receita velha da minha terra, para depois assuntar por vosmecê mesmo — continuou. — Se vosmecê não gostar do preparado, não lhe aporrinho mais. Fui eu mesmo que fiz, com esse instrumento aqui — a abriu as mãos em leque para o menino.
Contrariando os sentidos e mercê do afeto e da confiança que nutria pelo homem, o menino juntou os dedos indicador e médio, raspou a pasta, levando-a imediatamente à boca.
E, na medida em que mastigava, a careta de asco ainda renitente foi se transmudando numa expressão deslumbrada de quem prova o maná numa manhã orvalhada. Acabara de descobrir o segredo do velho homem: o respeito ancestral pela vida!