Em sua bela crônica “Quem manda sou eu”, publicada na Folha de São Paulo de 7 de setembro de 2014 (caderno “Ilustrada”, p. E-10), Ferreira Gullar insurge-se contra a imposição de se chamar “presidenta” à presidenta Dilma e contra a Lei 12.605/12, de 3 de abril de 2012, que estipula que os diplomas das instituições de ensino público e privado deverão trazer a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada.
Norma é tudo o que é usual, habitual e frequente numa comunidade linguística. A norma restringe o sistema. Por exemplo: o sistema permite que o feminino de diretor seja diretriz, como o de ator é atriz. Mas a norma restringiu o uso de diretriz para a geometria, e diretora ficou sendo o único feminino aceitável. Da mesma forma, o sistema admite que o pretérito perfeito de fazer seja fazi, como o de correr é corri. Mas a norma rejeita fazi e só aceita fiz, e os falantes corrigem a criança que diz fazi.
Um falante que diz chapéis para o plural de chapéu se guia pelo sistema, e não pela norma, já que não é usual dizer chapéis. O falante faz uma quarta proporcional: ao lado de papel, ele tem papéis; ao lado de chapéu, ele tem chapéis. Não se diga que é uma quarta proporcional inadequada, já que chapéu não se escreve com L final. Mas a pronúncia normal de papel, na área dialetal desse falante, é como a de chapéu. Além disso, se de papel com L temos papelaria, papelão e papeleiro com L, de chapéu com u temos chapelaria, chapelão e chapeleiro, com L também. Afinal, chapéu vem do francês antigo chapel. Com L.
Os nomes oriundos do particípio presente latino normalmente não se flexionam, como amante, estudante, lente (de ler), doente (de doer), ouvinte, constituinte, etc. Ocorre, no entanto, que há nomes oriundos do particípio presente latino cujo feminino a norma admite: governante (feminino: governanta)
Ferreira Gullar, em sua crônica, é contra o emprego do feminino presidenta, aceito pelos dicionários Houaiss e Aurélio, no Brasil, e pelo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Os que se rebelam, como ele, contra a forma presidenta argumentam com nomes como amante e gerente, por exemplo, que não admitem feminino, mas esquecem-se de infante e governante, cujos femininos existem há pelo menos 500 anos na nossa língua... Argumentar que não se deva dizer presidenta porque não se diz estudanta ou gerenta é ignorar o sistema e mostrar desprezo por uma norma atual. Em espanhol existe a forma contenta, e em francês os nomes oriundos do particípio presente latino normalmente se flexionam: étudiant/ étudiante, président/ présidente. Um dia, quem sabe?, talvez também se possa dizer em português contenta e estudanta... Mas não se trata de uma deriva da língua e certamente esse dia ainda está longe de chegar.
Com relação à lei que estipula a flexão de gênero nos diplomas, Ferreira Gullar pressupõe que ela esteja acima da gramática da língua portuguesa. Nenhum diploma registrará o feminino gerenta ou assistenta, mas apenas os femininos admitidos pela norma. Assim, os diplomas poderão registrar mestra, doutora, bacharela, engenheira ou arquiteta, por exemplo, que são femininos previstos pelo sistema e adotados pela norma.
Ainda a propósito de gênero, alguns estudiosos afirmam que a língua portuguesa é machista e apresentam pelo menos duas razões para isso: se numa sala há uma multidão de mulheres e apenas um homem, a concordância se fará no masculino plural; se uma pessoa quer agredir um homem, é a mãe dele que ela xinga; além disso, há nomes que são elogios para o homem e agressões à mulher: a um homem se pode chamar touro ou garanhão, mas chamar a mulher de vaca ou de égua é ofendê-la.
À primeira vista esses argumentos parecem ter fundamento. Adriano da Gama Kury, com quem mantive correspondência durante alguns anos, enviou-me seu belíssimo livro Para falar e escrever melhor o português (2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p. 192-199) em que chega a elogiar e a recomendar o livro A mulher na língua do povo, de Eliane Vasconcelos Leitão, que “estuda os vários casos em que as regras gramaticais e as palavras contribuem para fazer da mulher um 'ser humano anulado', segundo informa o Autor.
Um falante pode inventar um substantivo novo ou um verbo novo, mas não poderá inventar um gênero diferente nem uma conjugação diferente,
Assim, quando utiliza um termo agressivo para a mulher mas elogiativo para o homem, o falante é que está sendo machista, e não a língua, porque a escolha das palavras é exclusivamente responsabilidade sua. Mas, quando usa o feminino, o plural, ou conjuga um verbo, a responsabilidade é da língua, porque é a língua e não o falante que determina o gênero ou a flexão verbal. Assim “Deus” é masculino não porque a língua é machista, mas porque “Deus” não tem o “a” do feminino. O feminino é que tem a marca de gênero, em português. O masculino é, na verdade, a ausência de gênero. Por isso, pronomes como “quem”, “aquilo”, “isto”, “nada”, “tudo”, “alguém”, “ninguém”, etc. exigem concordância no masculino, que não é gênero. Aliás, o masculino deveria chamar-se “neutro” ou “gênero não-marcado”, por oposição ao feminino, que é gênero marcado. Da mesma forma, eu sei que “prato” é singular, porque não tem o “s” de plural. Apenas o plural é número marcado em português. O singular, como o masculino, não tem marca.
Com relação a nomes que são elogios para o homem e ofensas para a mulher, como pistoleiro/pistoleira, homem público/mulher pública, touro/vaca, aventureiro/aventureira, cão (melhor amigo do homem) / cadela (prostituta), etc., não há neles nada que permita concluir que a língua seja machista, porque se trata de vocábulos, de itens lexicais, de palavras de livre escolha do falante, sem imposição da língua. Se o falante tem o direito de inventar uma palavra (falso lexema), como fez Guimarães Rosa com o seu “hiputrélico”, ele não tem o direito de inventar um gênero novo, um plural diferente ou uma flexão verbal própria. Os instrumentos gramaticais são impostos ao falante, mas o vocabulário, não. Assim, não é a língua que é machista, mas o falante, quando usa nomes elogiativos para o homem e ofensivos para a mulher.