Meu Deus,
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
Meu pai.
Orfandade, Adélia Prado
Orfandade, Adélia Prado
Para muitos dos mortais, o dia de Natal é o dia do nascimento de Jesus. Mas desde a mais tenra idade que eu entendo o dia de Natal também como o aniversário da minha mãe. O entendimento da religião veio depois.
No próximo mês, dia 25 de dezembro, se assim tiver de ser, minha mãe fará 94 anos de vida. Nunca imaginei ter uma mãe com 80, 90, pois a minha sempre foi jovem, muito jovem, e depois, filho nunca acha, nem quer, que a mãe envelheça.
Somos quatro filhas. E somente na idade adulta entendi o significado de se ter filhas mulheres. Ironicamente eu só tenho filhos homens. Os Freuds e os Lacans da vida se debruçaram noites sobre esse tema, as feministas então... Relação difícil, emblemática, cheia de sentimentos ambíguos, dificuldades, competições inconscientes, e conscientes, disputas de poder pelo pai, enfim... muita terapia para dar conta dessa relação que transcende os úteros.
Da minha mãe herdei muito. Primeiro os olhos amarelos, cor de burro quando foge. Pois no verão ficam esverdeados, e escurecidos quando anoitecem. Sempre foram as minhas janelas da alma, tanto na beleza, quanto na capacidade de contemplar e ver o mundo. Minha mãe se emociona com o mundo e com a vida cotidianamente. Eu puxei isso dela. Sou uma eterna replicante que observa e extrai prazer de tudo o que os olhos alcançam. A beleza me emociona em todos os instantes do dia. E sou gratíssima por esse gen que gosta dos Ipês e do horizonte do mar.
A minha mãe é também uma sobrevivente. Sempre dura na queda como diz a canção infantil: “Terezinha de Jesus deu uma queda e foi ao chão... Terezinha levantou-se, levantou-se lá do chão...”. E de queda em queda ela, assim como Fênix, achava sempre uma brecha para renascer das cinzas.
Minha mãe nasceu fora de época. Era para estar nascendo agora, no século XXI. Viveu em tempos sombrios para as mulheres e nunca gostou das amarras do seu tempo. Gostava de ler os almanaques da vida; estudou no Lyceu, teve aulas de francês, costurava sua própria roupa, mas perdeu a mãe muito cedo e teve que trabalhar para o seu sustento na Saboaria Paraibana.
Sempre falava de como andava a pé no sol quente para o trabalho, e de como guardava suas saias embaixo do colchão para não amassar. Depois, com o casamento, não teve muito sossego. Casou-se numa época em que as mulheres tinham pouca voz, e cuidar das filhas, e da casa somente, talvez fosse pouco.
Aliás nunca gostou de informar a condição de “doméstica” quando preenchia formulário. Sentia-se diminuída com o peso que o termo tinha na desvalorização deste trabalho, em geral feminino. Mas sublimou tudo cantarolando Noel Rosa na cozinha (Esse amor que eu não esqueço, e que teve seu começo...).
A minha mãe sempre foi vaidosa, com personalidade no vestir e adorava moda (embora negasse com ardor), pois para uma trabalhadora-abelha-rainha-do-século-XIX-Vitoriano… que sempre foi, jamais aceitaria o ócio. Não que moda seja feita de ócio, muito pelo contrário, mas é cheia também de glamour, prazer e cores, muitas cores, e as cores primárias da vida da minha mãe talvez fossem mesmo mais para os tons cinzas. No mundo daquele seu tempo, não havia espaço para os excessos, muito menos para as escolhas. Eu herdei esse gosto pelos tecidos, acho que das nossas idas às Casas José Araújo, em busca de algum paninho especial. Há poucos anos ela ainda se enfeitava de colares e brincos, e, com o seu cabelo Chanel branco-azulado fazia sucesso seja na banca de Seu Mauro (in memorian), vendedor de cocos da calçadinha, como nos lugares mais sofisticados.
Minha mãe adorava Adélia Prado, Cecília Meireles e de quem é esse rosto... Lya Luft, Martha Medeiros. Poetas apresentadas por nós, filhas,
Nos seus hobbies, adorava bater uma perna no shopping, ir ao cinema, beber um bom vinho, sentar na calçadinha “longing to the sea...” e conversar. Minha mãe é a Senhora da conversa! Eu puxei à ela nisso tudo, e dou graças a “la vida” de ter essas qualidades, principalmente a arte da conversa, que faz de uma preposição uma interjeição! Quando viajou, foram poucos os seus passeios, soube apreciar cada paisagem, cada comportamento, cada palmo de território por onde passa. Sou assim também. Sim, ela também chorava com muita facilidade, com ou sem motivo. Eu herdei também esse vale de lágrimas, sempre. Claro, herdei o talento pelos armarinhos, pela cozinha; herdei muito sua criatividade e gosto pelo fazer surpresas, carinhos e proporcionar novidades aos outros.
Não tenho o tamanho da sua disponibilidade no servir nem o seu talento na cozinha (o seu coxão de porco assado no forno brando e a sua ambrosia não têm para Chef algum). Mas o meu olhar cronista/poeta diante dos dias, com certeza puxei à ela, que sabia escrever com maestria até um bilhete para o vigia do prédio. Se tivesse tido uma vida menos “ordinária” nas palavras de Virginia Woolf, teria tido oportunidade de desenvolver tantos outros talentos artísticos:
“Somente através dos nossos devaneios, dos nossos sonhos, é que a nossa verdade interior submersa poderá vir à tona.”
Ela reclamava que queria a festa de aniversário (dia de Natal) cotidianamente e com pinceladas de paciência das filhas. Mas quem já se viu festa e homenagem todo dia? E paciência? Peço desculpas de não ter a dosagem certa dessa virtude, um de meus defeitos com certeza não herdados dela. Talvez os Mindêlos mais rabugentos, ou os Balthar Peixoto de Vasconcelos? Talvez esta virtude esteja mais para Júlia, uma tia exótica e braba, que dizem, dizem... pareço com ela... Ana Júlia? Me chama Zé Palhano, amigo de infância, amigo querido.
Mamãe quando olhava o mundo de hoje, achava que não fez nada na vida. Woolf falou desse trabalho invisível das mulheres quando diz:
“Frequentemente, no final de um dia de uma mulher, nada de tangível permanece. A comida que foi preparada se foi; as crianças que foram cuidadas partiram para o mundo...”
Woolf já dizia também:
“O que sabemos das nossas mães, de nossas avós, bisavós,? O que fica? Nada. Somente uma tradição. Uma era bonita; outra era ruiva; uma outra foi beijada pela Rainha. Não sabemos de nada delas, somente os seus nomes e as datas dos seus casamentos e o número de filhos que tiveram.”
Numa época em que não existia outra saída para a vida das mulheres, você pode ter certeza, mamãe, de que sua vida foi consistente sim. Que teve desdobramentos, heranças, e continuidades. Somos quatro filhas-mulheres-lindas (no meu conceito de beleza), de bem com a vida (com todas as dificuldades – existenciais, inclusive), profissionais bem encaminhadas (como se dizia antigamente) e principalmente mulheres trabalhadoras da labuta, perseguidoras de auto-conhecimento e realizações.
Sei que você hoje não mais lerá esse texto que escrevi, que aqui reedito, como o leu quando fez 80 anos, e em muitos outros, com palavras de carinho e perdão. Como também sei que fui e ainda sou uma filha rebelde e sem paciência, mas, quero que saiba, mamãe, que a admiro muito, e se fosse escrever um livro sobre resistência feminina, você seria minha personagem principal.
Parabéns sempre! Beijos e abraços de todo seu pessoal.
Todo o meu afeto e minha admiração.
▪ Referências literárias: Woolf, Virginia. “Women & Fiction” IN: Women & writing e A room of one's own – tradução livre das citações.