Ao virar a última página do livro “1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite” de W.J. Solha, uma frase do bruxo do Cosme Velho, como já foi chamado Machado de Assis, assaltou-me a mente: “Ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim.” Expliquemos como a minha mente, certamente excitada pela leitura, foi capaz de fazer uma tal conexão entre a diminuta frase de Machado e o prodigioso poema de Solha que tem o subtítulo de: “o quinto, de seis tratados poético-filosóficos”.
Uma boa explicação, sobretudo para quem ainda não leu a obra, estriba-se justamente no que sobre ela já escreveram até aqui, e atenção a isto, porque tem tudo a ver com a própria arquitetura que o autor empregou para compô-la. Observe-se que:
O editor Linaldo Guedes em texto de posfácio afirma a certa altura: “Solha nos permite, com sua poética incomum, perceber nossos atos falhos mais que freudianos, porque remontam a algo que queremos compreender: o mistério da vida, não da morte.” E como ele fez isso nos é dito por Ronaldo Cagiano nas orelhas da mesma obra: o autor empreende um verdadeiro “passeio onírico por múltiplas instâncias artísticas e míticas (que acabam por se tornar) um repositório de um inconsciente individual e coletivo em que os signos de uma íntima perplexidade constituem o farol para percorremos as procelas que tanto nos afetam na contemporaneidade.”
Muito bem. Já começa a clarear a minha loucura lá com o Machado de Assis. Adiante com outras duas cabeças pensantes deste país que não dá a mínima ao pensamento edificante. José Eduardo Degrazia afirmou com muito acerto que “A mente de W. J. Solha é imensa, nela cabe o início e o fim do mundo, a eternidade num segundo. A poesia em tudo/entrudo. Carnavalização.” E Sérgio de Castro Pinto afirma por sua vez, que o autor “continua escrevendo sob a égide do inconformismo, estabelecendo cotejos entre homens, seres, coisas, fatos históricos etc., na medida em que os retira do seu imobilismo aparente para emprestar-lhes outras dimensões e outros significados”. E finalmente, o professor e escritor Expedito Ferraz Júnior (quem talvez tenha chegado mais próximo do ponto fulcral desta obra), afirma que: há um “jogo de provocações que faz com os acasos da linguagem, um inesgotável exercício daquilo que Jakobson definiu (cartesianamente) como projeção do eixo das semelhanças sobre o eixo das combinações”. Aí temos afinal o que constitui em suma esta obra. Uma vigorosa investigação poético-filosófica que tenta compreender o mistério da vida, não da morte, em suas múltiplas instâncias artísticas e míticas, estabelecendo cotejos entre homens, seres, coisas, fatos históricos etc., que nos dá a impressão de vislumbrarmos a eternidade num segundo, porque bem soube encaixar as semelhanças sobre o eixo das combinações” da própria existência humana!
Para aqueles pouco afeitos a semelhanças e combinações, lembro trecho de um texto crítico que escrevi sobre Solha lá no ano de 2019, à propósito de outra obra sua – “Vida aberta”. E que não só se confirma neste “1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite”, como observo com grande alegria que o autor segue lapidando seus pensamentos e sentimentos com raríssima lucidez.
Sobre a união entre Filosofia & Literatura, escrevi no passado, que é sempre uma relação difícil, porque no íntimo de cada uma delas, opera-se um métier muito particular que intenciona um vocabulário próprio. Todavia, se é verdade que ambas vislumbram, em seu horizonte, o conflito da existência humana, é possível estabelecer entre elas uma vizinhança comunicante ou, uma orientação de uma pela outra no sentido de potencializar o pensamento nas tramas do saber literário. Seja como for, cada vez menos restam dúvidas de que a filosofia pode trazer elementos necessários, para que a literatura se desenvolva a partir de si mesma; e a literatura, por seu turno, pode desenvolver temas que serão enrijecidos pelo discurso técnico do filósofo. Assim, no horizonte da produção filosófica e da produção literária, nos deparamos com o mesmo homem atravessado pela incompletude, pelo desejo de ser, pelo nada cravado por sua essência, pela falta, pela busca de sentido de sua vida que é sua tarefa própria. Filosofia e Literatura partilham desses mesmos anseios e buscam, cada uma por seu estilo próprio de significação, comunicar o drama da existência, detalhar o máximo possível a experiência do homem no mundo.
Mais adiante afirmamos naquele então, que o discurso filosófico encontra seu melhor acabamento na literatura, e a literatura pode ver-se rigorosamente formulada pela técnica discursiva filosófica. Não se trata de uma primazia do literário sobre o filosófico, trata-se, muito além, de unir dois meios de decodificação do real, de duas maneiras muito próprias de realizar o encontro do homem com o homem; trata-se afinal e também, da facticidade (que somos forçados a confrontar) do "homem em face de sua liberdade monstruosa.”
É deveras interessante a erudição que o autor demonstra, em sua grande habilidade em costurar conceitos, mitos, crenças, atavismos, obras de arte, autores, acontecimentos, tendências, artistas, santos, escrituras em suma; toda a tremenda carga cultural e simbólica que a humanidade acumulou em milênios. O autor realiza um empreendimento nesses moldes de uma forma tão incisiva nas imagens que levanta, de tal sorte coerente e concatenadas, que assistimos ao desenrolar das eternas questões que sempre ocuparam as mais profundas inquirições existenciais da humanidade desde “ab ovo”, expressão latina que significa "desde o ovo" (ou seja, "desde o início", "desde a origem").
Homens como W.J. Solha compreendem e felizmente tornam público a compreensão, que a alma é uma mina de desejos e, se na sua eterna insaciabilidade o gozo se conserva sempre como uma miragem, a progressão das miragens constitui a via do progresso e esse é o impulso que nos tem feito avançar aos trancos e barrancos. Que seja à custa de “laranjas mecânicas e/ou bananas de dinamite”. Estamos lançados nesse mecanismo, nesse jogo de forças pelas quais, de ilusão em ilusão substancialmente nos elevamos. Este parece ser o instinto fundamental da vida, a insaciabilidade do desejo de evolver. O sonho está sempre, eternamente, no amanhã, para que se transforme em sociedade. Assim, continuamente se desloca a nossa posição na linha do progresso. A grande questão é como isto vai se dando. Que outra coisa, senão um jogo de espelhos poderia induzir a inconsciência humana, ignorante de seus elevados fins a se adiantar no caminho da evolução? Solha nos faz pensar sobre tudo isto com muita profundidade.