Angela Merkel, a primeira-ministra alemã, como se sabe, está se aposentando, após quase vinte anos à frente do governo do mais importante país europeu, pelo menos em termos econômicos. É uma aposentadoria voluntária e não imposta por alguma derrota eleitoral ou por qualquer outro tipo de desgaste político. Foi anunciada já há algum tempo, o que é surpreendente, pois significa a espontânea renúncia ao poder, objeto de tanto apego por parte da totalidade dos que o detêm, por parte de uma líder no auge de seu prestígio e de sua popularidade. Um gesto, portanto, absolutamente raro e admirável, num mundo extremamente marcado pela ambição e pela total ausência de desprendimento.
Simplesmente Angela Merkel quis ir para casa, depois de tantos anos de luta diuturna na arena política alemã e europeia, onde exerceu, desde o início e cada vez mais, uma reconhecida e respeitada liderança. Resolveu sair por cima, como se diz, ao contrário de muitos que, ignorando o tempo e as circunstâncias, insistem em ficar até ser dispensados – ou simplesmente enxotados – como alguém – ou algo – sem mais nenhuma serventia. Essa sabedoria e essa grandeza me fazem lembrar do nosso Tancredo Neves. Eleito presidente pelo Colégio Eleitoral, tinha pela frente um confortável mandato de seis anos. Mas logo fez saber que, por ele, o mandato seria reduzido para quatro anos, tempo suficiente, a seu ver, para uma operosa gestão democrática. Magnânima demonstração de desapego. O que ele queria mesmo, segundo conta o embaixador Rubens Ricupero, era voltar para São João Del Rey depois da presidência e aproveitar seus últimos anos na paz da aldeia. Suprema sensatez. Já Sarney, como se sabe, lutou – e conseguiu – um mandato de cinco anos junto à Assembleia Nacional Constituinte, mandato esse que o levou ao fundo do poço da desimportância. Outra visão, outro apetite, evidentemente. Depois veio, com FHC, a possibilidade de reeleição, com mandato de quatro anos, como sabemos. Também outra visão e outro apetite. E assim segue – e tem seguido - a dança do poder entre nós, tupiniquins, como um bolero sem fim e sem rumo, onde o que tem imperado quase sempre são os interesses pessoais e momentâneos dos mandatários e não os superiores proveitos da nação.
Ir para casa. Para o recesso do lar, como se dizia antigamente. Para o sossego, a justa, merecida e discreta aposentadoria. Quem faz voluntariamente essa abnegada opção? Quem renuncia, por vontade própria, ao poder de mando, às influências, às mordomias dos cargos, ao prestígio e a tudo aquilo que alimenta as autoestimas e as vaidades mais vãs? Quem? Poucos, pouquíssimos líderes políticos deixaram o poder tão aclamados como Angela Merkel. Nos últimos tempos, que me lembre, só Mandela, na África do Sul. Numa das recentes homenagens que recebeu, Merkel foi unanimemente aplaudida de pé por vários minutos. Uma consagração. Que certamente levou em conta não só o que ela realizou no seu equilibrado e longo governo, como também sua inusitada decisão de afastar-se da vida pública, para recolher-se à sombra da vida privada, como uma cidadã comum, quase igual a outra qualquer.
Pois bem. O partido dessa mulher notável e reverenciada dentro e fora da Alemanha, a União Democrata-Cristã, de centro, simplesmente não foi o mais votado na eleição do domingo passado, 26 de setembro. Ficou em segundo lugar, perdendo a primazia para o Partido Social-Democrata, uma posição honrosa, tudo bem, mas não vitoriosa, para surpresa de muitos que pensavam poder Merkel transferir aos seus correligionários seu imenso prestígio pessoal. Veja só.
Lembrança imediata e inevitável que nos vem: Churchill perdendo a eleição que se seguiu à vitória dos Aliados na Segunda Grande Guerra. Esse mesmo Churchill que fora consagrado como o grande artífice daquela difícil vitória contra o nazifascismo. E como não lembrar de De Gaulle, herói e libertador da França, recolhido melancolicamente a Colombey-les-Deux-Églises, após ter deixado o poder não por decisão pessoal mas pela força maior das circunstâncias adversas? Esse De Gaulle, não esqueçamos, forçado a deixar a política pela porta dos fundos, foi aquele mesmo que a França reverenciou pouco depois, por ocasião de sua morte.
Merkel, Churchill, De Gaulle e tantos mais. Admirados num dia e rejeitados no outro por eleitores aparentemente volúveis, ingratos e sempre enigmáticos. Mistério das urnas, mistério da democracia. Como diz um amigo observador de tudo isso e muito mais: Vá entender.