Esse "causo" aconteceu no século passado. Em uma pequena cidade do alto sertão paraibano, a chuva era escassa quase o ano todo, chegando até a dez meses sem uma gota de água, e nos anos de seca, nem isso. Era tão pouca a chuva que, para as crianças não ficarem assustadas quando acontecesse, na escola a professora ensinava o que era chuva, com uma peneira e um pouco d’água: “chuva é assim, cai desse jeito do céu, eu mesma vi algumas vezes, poucas para uma vida toda”. Porém, quando a chuva caía, era um acontecimento, uma festa, todo mundo ia para a rua se molhar na chuva, gente que se ajoelhava agradecendo, outros corriam para começar a plantar.
Mas houve um ano em que não choveu nem uma gota. Já entrava no segundo ano, quando o céu escureceu no meio da tarde, parecia o fim do mundo, de um lado o sol escaldante, e do outro o céu escuro, escuro, armando um temporal. Todos assustados correram para suas casas esperando saber o que ia acontecer. De repente, começou a soprar um vento. Foi uma ventania tão forte que levantou uma revoada de poeira, troços, galhos, até panela e tabuleiros voaram pelas ruas, e, quando começou a chover, não era água, eram pedras de gelo. Faziam um barulho que parecia uma panela de pipoca gigante. Árvores caídas, não ficou nada no lugar. Foi um corre-corre só, uns para debaixo das camas, outros para dentro dos guarda-roupas pensando que o fim do mundo tinha chegado mesmo. Era um tal de rezar e pedir perdão dos pecados, muitos começaram a correr para a igreja matriz e confessar os seus erros, mesmo que não houvesse padre algum para ouvir, que foi o primeiro a se esconder na sacristia. Confissões jogadas ao vento, um desespero. Quem tinha ouvidos, ouviu. Quando a chuva de gelo parou, começaram a juntar os troços, refazer os telhados, juntar os cacos.
No dia seguinte, muitos andavam desconfiados, principalmente os que confessaram seus pecados alto, famílias quase desfeitas, outros contavam vantagem dizendo que foram arrastados pelo vento tantos quilômetros; uns diziam que chegaram até a voar, histórias de todo tipo, muito marido arrependido por ter confessado seus pecados, amizades desfeitas e amores descobertos, o verdadeiro fim do mundo, pelo menos para eles.
Quando os ventos foram acalmando, o coronel falou:
- Arreie as calças!
Tião assustadíssimo:
- Valei-me Nossa Senhora, agora lascou mesmo, o coronel valente vai fazer o que comigo???
Com um medo danado, apertado como estava, fez xixi nas calças. O coronel, quando viu:
- Deixe de ser frouxo homem, quero é trocar de calça com você, tá me estranhando? A minha está toda borrada e eu não vou sair assim, vão acabar comigo.
- Mas coronel, a minha está mijada.
- É melhor do que cagada, cabra frouxo!
E saiu com sua valentia, vestido nas calças de Tião. Mas antes se certificou se Tião tinha mesmo vestido as dele, toda borrada. E nem procurou as moletas do pobre Tião...
A história pode parecer engraçada, mas retrata como a nossa cultura foi construída, calcada numa força criada no imaginário popular, na exploração e submissão de pessoas, nos falsos poderes que expropriam do povo as necessidades mais primárias. Gostaria nunca tivesse existido situações assim, mas se não foi essa, podem acreditar, que muitas semelhantes ou até piores, aconteceram e ainda acontecem nesse país, em especial na “ladeira abaixo” que estamos vivendo, com a miséria estampada nas ruas diariamente. É só observar os homens e mulheres de hoje, com seus carrões, jogando migalhas nos sinais de trânsitos, “limpando suas consciências com bondades” às custas da pobreza alheia, sem abrir mão de privilégios, como se fossem merecedores. Sabemos que não o são.
Será que um dia trocaremos privilégios por igualdades de direitos? Será que ainda cabe sonhar com um país com oportunidades para todas as pessoas? Fica a reflexão!