Flora nasceu um ano depois da abertura do meu berçário — (sim, eu tive um berçário! —, a Escola Casa Aldeia Cresça.
A experiência de ter uma filha dentro da dinâmica do Aldeia Cresça foi extremamente positiva, tanto para mim, que pude ampliar a nossa relação para além dos laços de mãe e filha; como para ela (eu imagino!), que desde o princípio teve uma rotina dividida, compartilhada com outras crianças com as quais estabeleceu um elo profundo que perdura até hoje, experimentando vivências de muita autonomia, que lhe trouxeram inteireza e força. Pelo menos é dessa forma que vejo. Recentemente um amigo disse: “Flora foi um bebê comunista!” Foi! Dividiu os espaços de sua casa (morávamos no berçário), os brinquedos, os momentos, a mãe...
Percebo a beleza de tudo ter acontecido da melhor forma possível para mim e para Flora, sendo o berçário/escola/casa o “ninho” que precisávamos para viver as nossas experiências do jeito que éramos capazes naquele momento. Assim fizemos amigos que nos acompanham até hoje!
Quando Flora veio ao mundo foi muito bem acolhida e amada. A gravidez foi tranquila apesar de conter a incompreensão que eu tinha diante de um companheiro que dizia, na época, não querer filhos. Algo certamente superado depois.
Esse fato me fez pensar que por algum capricho da natureza, o corpo da mulher é o espaço de gerar a vida, o espaço onde a gravidez acontece e dessa forma eu sabia que a palavra final desse breve impasse era minha. O útero que envolve o abraço entre o óvulo e o espermatozóide envolve também outros sentimentos: medos, dúvidas, segredos, prazeres, dores, memórias, mas principalmente o poder feminino e a coragem.
A decisão de manter a gravidez foi tão natural e única dentro de mim como a formação do zigoto depois desse abraço. A barriga cresceu linda! Nunca me senti tão plena!
Flora chegou! Com o seu nascimento minha vida começou a mudar; mas nada aconteceu de forma inesperada! Em nenhum momento fui traída por minhas expectativas. Quando abracei a gravidez, escolhi a mudança de percurso. Escolhi ser mãe e amar profundamente, mesmo que carregada de minhas limitações e minha imaturidade, pois eu ainda era muito jovem.
A maternidade nunca foi um conto de fadas, nem a primeira nem a segunda. Cheias de desafios que me rasgaram e me costuraram muitas vezes, mas sempre imperou o desejo de viver e sentir.
Flora foi, desde o princípio, uma presença muito forte e muito marcante para mim. Fez-me ver o valor de nossas escolhas, a importância e a responsabilidade de renová-las a cada dia. Amamentei minha filha por dois anos e seis meses, contava histórias e cantava todas as noites para ela dormir. Mas minha juventude e inexperiência não poupou Flora de algumas vivências… paciência. Estou longe de ser perfeita.
Em muitos momentos senti-me como a mulher-foca do livro Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa Pinkola Éstes. A mulher que de repente deixa de dançar e vê que sua pele havia sido roubada. A presença de Flora me fez dar um outro tipo de mergulho em busca da verdade e, como no conto da Mulher-foca, foi ela (o filho do conto), mais tarde, quem mostrou o caminho até o esconderijo onde estava a minha pele roubada.
Assim, consegui fluir, seguir, ir.
Em Flora permaneceu o desejo pelo movimento, a busca. Talvez por algum incômodo ou a vontade de ter tido um lar com pai, mãe e um quarto numa casa que fosse da família; talvez por ter tido uma mãe que pegou o tempo que seria seu e partilhou com tantas outras crianças, talvez por não ter tido o pai presente… teve um avô, um “avohai”, mas não teve o pai. Ou simplesmente por ser alguém com um forte instinto de curiosidade e mudança.
Um dia, muitos anos depois, Flora decidiu partir em busca de suas próprias experiências. Foi em busca de seu pai. Foi morar com ele em São Paulo. Fiquei com as lembranças e a saudade.
Peitos de mãe
Boca de filha
Dois corações
Uma só armadilha
Leite farto
Forte abraço
Olho no olho
Momentos do parto
É cobra comendo cobra
É gente comendo gente
Lembranças do passado
Sentimentos do presente
Rabo na boca da serpente
Forma um laço em volta da gente
Pra sempre...
Já João veio logo depois de um aborto que sofri. Acho que lhe antecedeu um Ser que veio organizar o espaço para que ele pudesse chegar bem.
João nasceu depois de nove anos do nascimento de Flora, quando eu tinha uma lanchonete de produtos naturais, um novo amor, um lindo casamento, mas nem por isso era um momento de muita tranquilidade.
Foi mais difícil ser mãe nessa hora. Muito trabalho, muito cansaço… Nanego viajava bastante à trabalho também. Dois filhos, casa, lanchonete e outras atividades para garantir a vida. A corrida me fez ausente de João em vários momentos. Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Novas experiências e novas culpas.
João era uma criança super sensível, surpreendente, falante, doce e engraçada. Fez o seu percurso da infância para a adolescência, juventude e vida adulta de forma tranquila e pelo caminho ganhou talento, experiência e foi deixando as palavras faladas. Hoje é bem silencioso. Não sei se se sente só ou se apenas gosta de estar em seu espaço. Olho, me pergunto, lhe pergunto e fico me distraindo com as poucas palavras como resposta.
As mães saem acumulando culpas para depois terem a difícil tarefa de se livrarem delas. Juntei muitas, muitas culpas, pois achava que tinha que ser uma mãe perfeita… Com o tempo, fui descobrindo que a perfeição muda de cor e forma quando estamos chegando perto dela. Se torna inatingível, portanto! Sigo aprendendo a me aceitar sendo imperfeita.
Com o tempo entendi que o vazio deixado pelas mães em seus filhos é inevitável e se chama “espaço de criação” ou o “vazio para criar a vida” para além das heranças impostas pela nossa cultura, algo que impulsiona os filhos a buscarem saídas e a criarem suas próprias histórias.
Flora e João seguem e seguirão com suas escolhas e suas vidas. São criadores e criaturas em seus espaços vazios que não cabem mais em minhas culpas nem em meus braços.
E eu aprecio, mesmo que a distância, as pessoas que estão se tornando. Como diz a música de Caetano “Vi você crescer, fiz você crescer. Vi cê me fazer crescer também pra além de mim!"
Assim
laços de fitas unem nossos corações
a vida não liga pra isso e vai,vai, vai
as fitas ficam no varal do tempo
sujeitas ao vento....
acenando e colorindo o olhar dos filhos
como um mapa de amor
indicando o caminho
do ninho
Para quando quiserem chegar